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Tenho ouvido, inclusive em audiências públicas, de deputados e senadores de muita agitação verbal e pouco conhecimento jurídico, histórico e filosófico, que, no Estado laico, não podem ser levadas em consideração as opiniões de quem tem convicções religiosas, caso contrário, o ente estatal deixaria de ser laico para se tornar um Estado "religioso", no caso de aqueles que têm fé constituírem a maioria no país.

Diante dessa formulação, entendo necessário esclarecer em que consiste o "Estado laico". Laico é o ente estatal em que todas as deliberações do povo e dos poderes constituídos fazem-se à luz da decisão direta ou indireta da sociedade. No Estado laico e democrático, pessoas com convicção religiosa não têm o mesmo direito pluralista de decidir sobre os destinos e caminhos da pátria.

De rigor, os áulicos do ateísmo entendem que só aqueles que não acreditam em Deus têm o direito de opinar no Estado laico, com o que o Brasil, que, segundo pesquisas, tem mais de 80% da população composta de pessoas que acreditam em Deus, só poderia ser governado pelos 20% de ateus. Para tais cidadãos de muita ação e pouca reflexão, o Estado teria de escoimar – como no período do "Terror", após a Revolução Francesa (1792/4) – todos os cidadãos que acreditam num Ser Supremo. O Deus "Razão", de Robespierre, deveria prevalecer sobre outras convicções e divindades cultuadas nas diversas religiões então existentes.

À evidência, tais cidadãos sequer leram a Constituição, toda ela colocada sob proteção de Deus, estando seu preâmbulo assim redigido: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil" (grifos meus).

Pergunto: que Deus é este, que protege os constituintes e o povo brasileiro, mas que é alijado de tudo porque aquela minoria – segundo a qual, por ser o Estado laico, quem tem convicções religiosas não deveria opinar? O primeiro que deveriam fazer, os que abraçam essa esdrúxula convicção, seria propor uma emenda constitucional e obter o voto de 60% dos parlamentares, em dois turnos, para alterar o preâmbulo da Constituição, substituindo "Sob a proteção de Deus" por "Sem a proteção de Deus"!

O certo é que, filosoficamente, Estado laico é o que Estado que assegura a seus cidadãos o direito de livremente professar qualquer religião, a eles garantindo idênticos direitos individuais, políticos e sociais que os ateus ou agnósticos possuem. É o que permite que todos, independentemente de credo, possam decidir os destinos da nação, conforme a maioria democrática, que lhes permite empalmar o poder. Se a maioria for composta de pessoas que possuem convicção religiosa, terá que respeitar a minoria, que pensa diferentemente; se o número de ateus ou agnósticos preponderar, no conjunto da sociedade, então, têm que respeitar a minoria que acredita em Deus.

Não sem razão, o art. 210, § 1.º, da Constituição Federal declara: "§ 1.º – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental", o que vale dizer, consagra a disciplina religiosa, em face dos edificantes valores supremos que, normalmente, seguem aqueles que acreditam em Deus, nos campos da ética e do comportamento social, mas respeita as pessoas que não têm tal convicção, tornando obrigatória a inclusão da matéria, na grade curricular, e facultativa a freqüência. E este dispositivo que, claramente, caracteriza o Estado laico e pluralista, onde os que acreditam em Deus e os que não acreditam têm idênticos direitos. No caso dos feriados religiosos, se a maioria do povo, por seus representantes, considerou-os necessários, são rigorosamente constitucionais e valorizam a democracia brasileira.

Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Guerra-ESG. É presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária – CEU.

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