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A transformação do projeto aprovado pelos vereadores representa um retro­­­cesso equivalente àquele que caracte­­­rizou o modo de vida das sociedades feudais

A aprovação do projeto de lei pela Câmara Municipal de Curitiba que autoriza os moradores das ruas "sem saída" erguerem cancelas e contratarem seguranças privados para impedir a entrada de pessoas "estranhas" suscita preocupações.

Trata-se de uma lei de iniciativa parlamentar socialmente perturbadora no sentido de apontar até onde setores dirigentes da classe política local, amparados em princípios políticos populistas, ativistas da cultura do medo e da insegurança, são capazes de se comprometer com o desmonte do espaço público urbano.

A sanção do Poder Executivo Municipal ao projeto de lei em questão, além de sinalizar um claro e inequívoco processo de transferência da segurança pública aos ombros do próprio contribuinte, constitui uma espécie de atentado político à luta de gerações sucessivas, em prol da conquista, defesa e preservação de direitos constitucionais como os de caminhar por avenidas e ruas públicas sem sofrer impedimentos arbitrários ou socialmente discriminatórios.

Sem menosprezar a justa preocupação das famílias acuadas pelo medo e pela ausência de políticas de segurança pública eficazes, a transformação do projeto aprovado pelos vereadores em lei municipal representa um retrocesso histórico equivalente àquele que caracterizou o modo de vida das sociedades feudais. Durante essa longa e obscura fase de desenvolvimento da vida social, o grande proprietário de terras arrogava-se no direito de erguer mata-burros e dispor de exército particular para extorquir as pessoas que precisavam transitar nas estradas que cortavam as terras do senhor feudal. O objetivo do fechamento das estradas na época era negar o livre direito de ir e vir e cobrar impostos. Hoje, a odiosa república privada do senhor feudal tornou-se uma relíquia da história.

Como se sabe, as sociedades urbano-industrais e o Estado moderno decretaram o fim do poder despótico e ilegítimo do poder feudal, consolidaram o princípio da divisão constitucional do poder e fixaram a distinção entre espaço público e privado. Desde então, a justificativa para o exercício consequente do poder político e a existência de funções públicas remuneradas, como as de prefeitos e vereadores, obriga a classe política resguardar direitos constitucionais básicos que impõem deveres exclusivos e intervenção direta do Estado.

O cumprimento dos deveres legais do poder público exige que os vereadores se comprometam com a viabilização de medidas políticas que ofereçam à população soluções realmente duradouras de planejamento urbano, segurança pública, defesa, proteção e valorização dos espaços que pertencem a todos. A opção por esse tipo de política condena veementemente qualquer iniciativa parlamentar que associa segurança pública à construção de guaritas privadas, arames farpados, barricadas urbanas e guetos residenciais.

Não é sensato, portanto, dentro de um regime político democrático e signatário dos direitos humanos fundamentais, que os legisladores municipais chancelem o discurso da cultura do medo como forma de justificar o retorno de argumentos e práticas políticas feudais que, outrora, legitimaram o esgarçamento do espaço urbano. O momento histórico atual exige, ao contrário, que o poder público municipal atenha-se firmemente às suas atribuições constitucionais e evite onerar o já combalido bolso do trabalhador contribuinte, valendo-se de medidas políticas segregadoras destinadas a converter o espaço público numa espécie de nova república privada das ONGs.

Cezar Bueno, doutor em Sociologia, é professor da PUCPR.

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