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| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

No último dia 21, o governo Temer editou decreto que regulamenta a Lei de Migração (Lei 13.445/2017), que entrou em vigor na mesma data. Com isso, acabou-se a vigência do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980). A nova lei, como já afirmamos em maio deste ano, trouxe dispositivos em conformidade com a Constituição Federal e com o regime do Estado Democrático de Direito. Passa-se, agora, a tratar o imigrante como cidadão, tal como queremos que os brasileiros sejam tratados pelos Estados estrangeiros no exterior. Não há, por isso, privilégios nem regime jurídico especial instituído para o imigrante que se estabelece no país. Com o decreto 9.199 veem-se avanços, mas ainda existem recuos que, felizmente, podem ser remediados com decreto modificador.

Verifica-se que o decreto 9.199 recupera a noção de “migrante” (art. 1º, I) que foi desnecessariamente vetada pelo presidente na Lei de Migração, uma vez que a designação permanece por todo o texto legal. Além disso, os Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e o de Trabalho integrarão as suas bases de dados com o processamento de solicitações de vistos, controle migratório, registro e autorização de residência (art. 12), disposição também encontrada na integração das bases relacionadas ao registro de “estrangeiros” (sic) do Itamaraty e da Polícia Federal (art. 60). São medidas que, a princípio, podem se tornar um entrave para a administração, tendo em vista a difícil comunicação interministerial e levar mais tempo para se concretizar a aplicação da lei. Entretanto, o possível atraso não retira o benefício, porque comunicarão três importantes órgãos da União que, quase sempre, cuidaram isoladamente das questões cotidianas do imigrante no Brasil.

Não há privilégios nem regime jurídico especial instituído para o imigrante que se estabelece no país

Além disso, acompanhando as recentes alterações na normativa sobre o nome social, o decreto permite que o imigrante requeira, a qualquer tempo, a inclusão do seu nome social, acompanhado do nome civil, nos bancos de dados do registro de migrantes (art. 69, §4º). Mas as modificações no nome civil somente podem ser realizadas após decisão judicial (art. 76). Nesse caminho, impõe unicamente ao imigrante a responsabilidade de manter atualizados os dados do seu registro (art. 70, parágrafo único), impedindo que ele se apresente constantemente à Polícia Federal.

A nova normativa migratória deve buscar a equidade entre brasileiros e imigrantes, restando aceitáveis tão somente as distinções escritas na Constituição Federal. Por isso, é intrigante a abrangência, ou o erro de redação, do art. 81 que obriga que os cartórios de registro civil enviem mensalmente informações acerca dos registros e do óbito de imigrantes à Polícia Federal. Não se sabe se elas tratarão de todos os registros relativos aos imigrantes ou apenas os de nascimento. Se forem de todos, não há motivação plausível para que a polícia mantenha essas informações.

Opinião da Gazeta: Migração - O caminho e as pedras (editorial de 26 de novembro de 2017)

Leia também: Lei de Migração, seja muito bem-vinda! (artigo de Melissa Casagrande publicado em 02 de maio de 2017)

Leia também: A invasão dos bárbaros (artigo de Flavio Morgenstern, publicado em 02 de maio de 2017)

Outro recuo consta no art. 38, §1º, I, que exige mais que a própria lei para o imigrante que queira obter visto temporário de trabalho. Como oferta de trabalho formalizada por pessoa jurídica, o decreto entende que o imigrante deve ter contrato individual de trabalho ou contrato de prestação de serviços, o que é um paradoxo, uma vez que obriga as empresas a contratarem imigrantes antes mesmo do reconhecimento formal deles perante o Estado brasileiro. Isto é, consuma-se a relação trabalhista para depois regular a situação empregatícia do imigrante no país. Essa hipótese poderá impedir que as empresas contratem imigrantes tendo em vista as incertezas jurídicas decorrentes de ter empregados à espera do visto temporário de trabalho.

Ademais, a previsão, tanto na lei, quanto na restrição infundada do decreto, é meio para impedir que imigrantes que não detenham titulação de ensino superior e que não possuam capacidades profissionais estratégicas para o Brasil obtenham o visto de trabalho. Cabe aos três ministérios já referidos definir os critérios para que sejam “capacidades profissionais estratégicas” e a definição não pode ser subjetiva, já que serão definidos em ato interministerial com o Conselho Nacional de Imigração. Porém, a Lei de Migração, no art. 14, §5º, restringiu a dispensa da oferta de trabalho para somente aqueles detenham tão somente titulação de ensino superior, sem mencionar as indefinidas “capacidades profissionais estratégicas ao país”. Percebe-se que a medida serve ou para tentar refinar o processo de imigração ao país, ou para continuar a reserva do mercado de trabalho.

O espaço é pequeno para análise mais aprofundada de um decreto de 319 artigos, mas os pontos levantados revelam em parte a contradição do novo ato regulamentador para com a Lei de Migração. O decreto buscou seguir a motivação da lei, porém recuou no que concerne à regulamentação do trabalho pelo imigrante, como se viu. Felizmente decretos expedidos pelo Poder Executivo podem facilmente ser alterados, pois só dependem da vontade do presidente da República.

Pedro Henrique Galloti Kenicke é advogado, mestre em Direito pela UFPR e membro da Comissão de Direito Internacional da OAB-PR.
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