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Liberalismo econômico e sustentabilidade ambiental: há conciliação possível?
| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

A estagnação econômica que o Brasil vive nos últimos anos teve reflexo direto na eleição presidencial, determinando o viés ideológico que a política brasileira tomaria. Desde o início da campanha, o então candidato Jair Bolsonaro já sinalizava uma postura política conservadora, com os pressupostos do liberalismo no tocante à economia, neste caso representado pelo ministro Paulo Guedes e seus assessores diretos.

O desenvolvimento econômico do país é o pilar essencial do governo, mas fica a pergunta: a qualquer custo? Penso que não deva ser a todo e qualquer custo, embora, a julgar por algumas iniciativas do Planalto, a resposta pareça ser positiva.

Tomo como exemplo o Projeto de Lei 2.362 de 2019, de autoria dos senadores Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) e Marcio Bittar (MDB/AC), que propõe a revogação do Capítulo IV da Lei 12.651/12, o Código Florestal. O capítulo refere-se à chamada Reserva Legal, ou seja, à obrigatoriedade de que toda propriedade rural tem de preservar uma porcentagem da área de cobertura nativa, sendo que, se localizada na Amazônia Legal – 80% do imóvel situado em área de florestas e 35% no cerrado – e, nas demais localidades, 20% do terreno total.

O Brasil, em razão das queimadas e desmatamentos, já corre sério risco de ingressar na lista de países poluidores

Segundo o Cadastro Ambiental Rural (CAR), somando-se as unidades de conservação e as terras indígenas, o Brasil teria uma cobertura de vegetação protegida de mais de 257 milhões de hectares, o que equivale a 30,2% do território nacional. Porcentagem elevada se comparada com as áreas de preservação na Austrália (19,2%), Estados Unidos (13%) e Canadá (9,7%). Com base nestes dados e no argumento de que “é preciso garantir o direito constitucional de propriedade”, o projeto acusa a Reserva Legal de ser um limite ao exercício do direito de propriedade, consagrado pela Constituição. Porém, as justificativas apresentadas partem de premissas equivocadas.

O direito constitucional de propriedade não pode ser considerado absoluto. O artigo 5, inciso XXII da Constituição garante o direito de propriedade – aqui tratado coletivamente, ou seja, garantido o direito de propriedade de bens materiais (imóvel) e imateriais (autoria e propriedade intelectual). No entanto, mantendo o espírito de coletividade e solidariedade que deve existir idealmente na sociedade, o mesmo artigo 5, inciso XXIII estabelece que a propriedade deverá atender à função social.

As forças políticas e econômicas em nosso país tendem a interpretar a extensão do conceito da função social da propriedade segundo as suas convicções e ideologias, o que é absolutamente do jogo democrático. Entretanto, sendo o meio ambiente um bem coletivo, as interpretações devem pender para o coletivo, não somente no presente, mas também o coletivo formado pelas futuras gerações. O artigo 225 da Constituição estabelece que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

O direito constitucional a um meio ambiente sadio que considere as necessidades das presentes e futuras gerações é tão importante quanto o direito de propriedade e o que ele simboliza em termos de desenvolvimento e captação de recursos estrangeiros. O projeto de lei compara o Brasil a países desenvolvidos, que para atingir este status degradaram o meio ambiente. Também desconsidera as obrigações assumidas em tratados e convenções internacionais, como o Protocolo de Quioto (Decreto Legislativo 144/02) que impõe a redução de gases de efeito estufa. O Brasil, em razão das queimadas e desmatamentos, já corre sério risco de ingressar na lista de países poluidores, não podendo mais se beneficiar do Comércio de Emissões, Implementação Conjunta e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), fonte de receita para países em desenvolvimento que mantêm ou ampliam a cobertura de florestas.

Autorizar a retirada da Reserva Legal dos imóveis rurais seria um retrocesso social. A ampliação da agricultura e pecuária, justificativas apresentadas no projeto, são, sem dúvida, de grande importância e interesse para o Brasil, mas eis a questão: em vez de aumentar a produção de commodities, que por natureza são de baixo valor agregado e deixam aqui as externalidades ambientais, não seria melhor investirmos em tecnologias sustentáveis que possam elevar a produção nas áreas existentes, com menor impacto ambiental? O Brasil é um dos maiores exportadores de água virtual em seus produtos, mas não cobra um centavo por isso e nem a utiliza como alavancagem em negociações internacionais. Existem alternativas, mas ao que tudo indica pouca vontade política para adotá-las.

Douglas de Castro, advogado da área ambiental e regulatória, é pós-doutor em Direito Internacional Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, doutor em Ciência Política - Relações Internacionais pela USP, mestre em Direito pela USP.

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