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 | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

A liberdade de expressão é característica fundamental de regimes democráticos. A sua preservação reclama da sociedade e do poder público vigilância constante. Todavia, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, que possa ser exercido em detrimento do meio ambiente, do direito de locomoção e do direito de propriedade.

Manifestações artísticas e culturais são constitucionalmente protegidas; não é dado ao poder público proibi-las ou ditar-lhes o conteúdo. Quando a autoridade pública escolhe o que pode ser dito, está em verdade praticando censura. Por outro lado, cabe também à autoridade pública regulamentar o uso do espaço público e, em especial, à prefeitura municipal, cabe ordenar o tempo, lugar e maneira como se dão tais eventos nas ruas, parques e praças.

Regulamentações razoáveis de tempo, lugar e maneira não violam qualquer direito garantido constitucionalmente. Nos Estados Unidos – onde se entendeu que até mesmo queimar a bandeira americana é ato protegido pelo direito à liberdade de expressão, consagrado na Primeira Emenda –, a Suprema Corte desenvolveu um teste, dividido em quatro etapas, para aferir se uma regulamentação é ou não é válida.

Governo pode restringir ou mesmo proibir manifestações artísticas, culturais ou políticas em determinados horários para proteger interesses sociais legítimos

Para passar neste teste, a regulamentação não pode ser direcionada ao conteúdo da manifestação – por exemplo, não pode proibir discursos favoráveis ou contrários à determinada corrente ideológica. Também deve abranger somente o que é estritamente necessário para garantir o seu objetivo, sem estabelecer entraves demasiadamente pesados para os cidadãos. Deve, ainda, servir a um interesse legítimo do governo, como, por exemplo, o direito ao sossego ou à livre locomoção em calçadas. E, finalmente, deixar abertos outros canais de comunicação aos interessados; caso a proibição diga respeito a determinada rua, por exemplo, deve haver outro espaço público em que ela seja permitida.

Com fundamento nisso, o governo pode restringir ou mesmo proibir manifestações artísticas, culturais ou políticas em determinados horários para proteger interesses sociais legítimos, como o transporte público, por exemplo. Isso significa que a manifestação de pensamento é livre, mas não pode acontecer em qualquer lugar e em qualquer hora. Assim, se não é permitida a aglomeração de pessoas (ou artistas) na Times Square na hora do rush (Cox v. Louisiana, decisão de 1965), da mesma forma não parece também razoável permitir que manifestações artísticas tomem a Rua XV de Novembro de assalto, a qualquer tempo, lugar e maneira.

Nesse contexto, a regulação encaminhada pelo Executivo municipal, dentro de sua legítima competência, preocupa-se unicamente em regulamentar questões de tempo, lugar e maneira para a apresentação de artistas de rua em Curitiba. Sob o ponto de vista da Suprema Corte americana, poder-se-ia com segurança dizer que o decreto teria respaldo. Vejamos: o decreto em nenhum momento se preocupa com o conteúdo das manifestações; pouco importa se o artista está reproduzir a Marselhesa ou os cantos peruanos já tradicionais na Praça Osório. O conteúdo é livre. O decreto trata apenas da regulamentação dos locais, horários, limites e maneiras – em forma de autorizações prévias – para a prática de tais atividades. Diga-se desde já que tais autorizações não derivam da carga subjetiva do agente público; destinam-se a cadastrar os artistas. O decreto serve interesses plenamente legítimos: assegurar o meio ambiente equilibrado, livre passagem de pedestres, ciclistas e automóveis e a segurança pública, em especial em áreas de grande circulação. Finalmente, o decreto municipal estabelece alternativas razoáveis, inclusive prevendo a criação de uma comissão de conciliação para dirimir conflitos relativos à apresentação dos artistas de rua.

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E o Supremo Tribunal Federal, como se posicionaria diante de tal regulamentação? Infelizmente, as decisões judiciais ainda são imprevisíveis no Brasil. Em julgamento atualmente em curso, o Supremo está a analisar se centrais sindicais, sindicatos e a Coordenação Nacional de Lutas podem ou não ser multados por interromper completamente o trânsito na BR-101 entre Alagoas e Sergipe, em manifestação contrária à transposição do Rio São Francisco, no ano de 2008. Pasme: no caso havia inclusive decisão judicial proibindo tal manifestação em prol da preservação do direito à livre locomoção na rodovia, ordem que acabou propositadamente sendo descumprida pelas entidades de “lutas”.

Os votos dos ministros Alexandre de Moraes, Luiz Fux e Marco Aurélio seguiram a mesma lógica: exigências razoáveis – como parece ser o caso de impedir o bloqueio das principais rodovias do país – não significam desprezar a liberdade de expressão. Obviamente, as manifestações se tornam abusivas quando impedem o livre acesso das pessoas a hospitais, aeroportos e rodovias. Porém, o julgamento sofreu dura guinada. Após entendimento contrário do ministro Edson Fachin, somaram-se cinco ministros – até agora, a maioria – entendendo que a manifestação dos sindicatos e centrais, ao interromper o trânsito na rodovia, não foi ilegal (mesmo desrespeitando ordem judicial), tendo a ministra Cármen Lúcia inclusive afirmado que a “democracia faz barulho” (sabe-se lá qual o nível sonoro aceitável para a eminente ministra). O julgamento foi suspenso e o Supremo está a poucos passos de legitimar verdadeiro abuso do direito à liberdade de expressão.

O decreto de Curitiba que regulamenta tempo, lugar e maneira das apresentações dos artistas de rua na cidade foi contestado em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público. Por especificidades jurídicas, dificilmente o decreto será analisado pelo STF; a palavra final provavelmente caberá ao Tribunal de Justiça do Paraná, que, espera-se, reconheça que a regulamentação é benéfica à convivência civilizada na cidade.

Vitor Puppi, mestre em Direito pela Universidade da Califórnia, Berkeley, é secretário municipal de Finanças de Curitiba, procurador do Estado e advogado licenciado na Califórnia (EUA).
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