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Liberdade de expressão e liberdade para calar o outro: uma estranha encruzilhada
| Foto: Bigstock

Imponderáveis são as reviravoltas da história. A crer no filósofo alemão G.W.F. Hegel, o primeiro a elaborar uma explicação lógica para as transformações sociais e culturais, a história não comporta retrocessos, pois uma experiência já vivida pela coletividade deixa marcas indeléveis, e nada se repete rigorosamente da mesma forma. É possível, no entanto, falar em reviravoltas, sustos, solavancos e acidentes da história.

A experiência real, contudo, é sempre o desvelar do novo, e o inesperado inclui, às vezes, o retorno do mesmo. A discussão que saiu de um programa de baixo nível, com apresentadores confessamente despreparados e despreocupados com as consequências de suas palavras, chegou aos grandes jornais. Aí, também, uns parecem achar que a palavra “nazista” torna qualquer sujeito criminoso ao passar-lhe pela boca. Outros, bem ao contrário, observam que há grupos supremacistas brancos nos EUA; e quem ousaria questionar que aquela é a terra prometida, onde a mácula ética é inconcebível? O debate prossegue porque as visões de condenação automática e defesa da “liberdade de expressão” não são razoáveis. Mas onde está o erro?

O erro está em confundir liberdade de expressão com a liberdade de ação. Eticamente, são duas esferas distintas: a da consciência, gozadora do direito de se expressar, e a da ação capaz de produzir dolo, de ferir o outro. Quem faz da defesa partidária do racismo e da eugenia uma questão de expressão não entendeu que esse partidarismo tem consequências sobre a vida alheia. É o intelectual de gabinete no campo da discussão abstrata, sem preocupação ética com o que acontecerá às pessoas na rua.

Por falar em ética, quantas das reações imediatas e apaixonadas até agora se preocuparam em consultar especialistas em ética, para que se tratasse o assunto do ponto de vista do que é legítimo ou não, do que seria moral ou imoral?

Teria sido sensato voltar às definições fundamentais de liberdades individuais para lembrar que não são definições legais, e sim princípios éticos que fundamentam a legitimidade da própria lei. Mas estamos no Brasil, e é compreensível que uma discussão envolvendo Benjamin Constant de Rebecque, Immanuel Kant ou Alexis de Tocqueville não esteja no cardápio.

Ao contrário, o único princípio ético que vimos mencionado foi o da contradição da oferta de tolerância aos intolerantes, de Karl Popper, mas tampouco vimos uma análise do que ele significa, e das razões e argumentos para validá-lo ou invalidá-lo. Como de costume, no Brasil do século 21, vimos manifestações de apoio ou rejeição, aprovação ou desaprovação de um... argumento. Ora, a um argumento não se reage com posicionamentos ou juízos de valor, pois sua força deriva da necessidade lógica de se aceitar a conclusão a partir da plausibilidade das premissas. Talvez seja demais esperar que argumentos mereçam mais consideração do que opiniões soltas, mas não custa lembrar que a consequência desse processo é a diluição dos resquícios de civilidade da nossa cultura.

O que Popper queria enfatizar era a contradição lógica de defender a liberdade de alguém que quer me escravizar e matar. Popper não está preocupado com a liberdade de falar, e sim com a de agir, e partidos políticos servem para agir e mudar a sociedade, não para falar irresponsavelmente no bar ou em um podcast. Quem propõe que esse seja um ataque à liberdade de expressão não entendeu o significado de liberdade de expressão, e que uma expressão do tipo “você não deveria existir”, ou “eu apoio a legalização da pedofilia”, ou “eu defendo que mulheres devem ser vendidas como escravas sexuais”, não é repudiada pelo seu valor como expressão, mas pelo que prenuncia como ação.

Dizer que essa pessoa não pode se expressar é uma discussão sobre liberdade de fala, mas dizer que essa pessoa não pode fundar o partido que executará sua ideologia não é mais uma questão de expressão e opinião, e sim de transformação concreta da sociedade, com consequências sobre as nossas vidas.

Muita água rolou desde que um apresentador do Flow e um deputado defenderam a legalidade de partidos nazistas, e outra deputada defendeu que partidos brasileiros façam apologia à ditadura norte-coreana, pois ela não toma a nossa liberdade, mas apenas a dos coreanos. Tivemos, depois, outros três casos quentes envolvendo liberdade de expressão: o da suposta saudação nazista de outro apresentador; o do deputado que enviou mensagem imoral para um grupo privado, mas logo desgraçado por sua pronta divulgação; e o caso mais fresco, do ator que estapeou o outro na cerimônia do Oscar. Em todos esses casos chama atenção o fato de haver posicionamentos apaixonados pró e contra, ainda que os prós às vezes venham acompanhados de certas condições e ressalvas, do tipo “dadas as circunstâncias” ou “não foi certo, mas...”.

Esse é fundamentalmente o problema do relativismo; ele é casuístico, e trabalha com dois pesos e duas medidas. Imaginemos que um pacifista, cujo princípio fundamental seja a condenação da guerra e a promoção da paz, reconheça a guerra como legítima. Mais que isso, imaginemos que esse pacifista reconheça como importante para a paz que seja reconhecido o direito de fazer guerra, e apoie a existência de grupos belicistas ou expansionistas.

O caso do pacifista que “acha importante” haver defensores da guerra é um exemplo de contradição, mas ainda diferente do exemplo de um liberal que defenda a legitimidade de um partido totalitarista. O pacifista pode ser apenas um hipócrita e desejar a paz para si, reconhecendo a importância de outros lutarem no seu lugar. Ele está em contradição na teoria, mas seus interesses não são contraditórios. Mais inteligente que o liberal que defende partidos totalitários, o pacifista que defende belicistas está agindo em benefício próprio. Alguém irá à guerra no lugar dele, e ele pode ficar em casa defendendo a paz. O sujeito que defende a permissão a partidos totalitários em nome da liberdade de expressão não está sequer agindo em seu próprio favor, pois defende, de fato, mecanismos destinados a suprimir a sua liberdade.

Ainda que alguns achem bonito no papel, defender na prática que um partido escravista ou segregacionista seja legítimo é uma abominação moral e lógica. Essas coisas são proibidas nas sociedades democráticas modernas por serem imorais, e não em um sentido relativo e cultural da moralidade. São eticamente condenáveis porque causam dano real, físico, e foi socialmente custoso criarmos a consciência de que escravidão ou nazismo são práticas imorais, inaceitáveis, indefensáveis. Porém, são também impossibilidades lógicas, pois defender o direito de uma ação destinada a suprimir o meu direito de defendê-la é um gesto autoanulador da liberdade que eu (supostamente) prego como princípio máximo. Um liberal que raciocina logicamente, portanto, jamais poderia pregar a legitimidade de gestos e iniciativas que suprimam a liberdade.

Quando vemos diversos articulistas continuamente enfatizando que a livre expressão é sempre boa, que proibi-la equivale a queimar livros e perseguir artistas, fica clara a incapacidade de virar a chave desses casos de censura para o que está realmente sendo discutido, que não passa perto do repúdio à opinião, mas tem a ver com o repúdio que qualquer sujeito moral e qualquer defensor da liberdade tem o dever de apresentar contra a proposta de legitimidade de um partido nazista.

Diante disso, dizer que o “cancelamento” sofrido pelo defensor de tamanho absurdo é em si uma perseguição e uma privação de liberdade chega a ser insano. O sujeito defende a “liberdade” de atuação de um programa político que quer calar e perseguir outros, as pessoas saem da sala e dizem que não querem mais falar com ele – uma punição não superior à que criancinhas aplicam no parquinho –, e uma parte da sociedade chama essas pessoas de intolerantes? Repito, é simplesmente insano.

É claro, pode ter havido excesso ao misturar uma tentativa tosca e irresponsável de defesa da “liberdade de expressão” e apologia real à ação prática, mas nosso interesse não é dar ênfase às trapalhadas de jovens empolgados, e sim lembrar aos insensatos de cabeça fria por que, afinal, a ideia de um partido que defende democraticamente a ditadura é absurda e irracional. Imaginemos que, à noite, ao redor de uma fogueira de acampamento, alguém diga “na primeira chance vou matar três de vocês”. Parece uma ideia inteligente não fazer restrição alguma a essa pessoa? Dormir ao lado dela como se nada tivesse acontecido? Sim, todos têm liberdade de expressão, e isso é ótimo. O que não queremos é que essa pessoa tenha liberdade de ação. Se o grupo diz que essa pessoa está expulsa, ou vai ficar na cadeia, isso é censura ou cancelamento?

Certamente esse caso difere muito de um comentário ou piada imoral desacompanhados de ação ou apologia à ação concreta. Uma piada ofensiva pode gerar um bom processo, mas, se abdicarmos da frieza da civilidade em favor do caloroso chamado da natureza, o que nos impedirá de amanhã esmurrar o chefe ou o vendedor quando eles agem de má-fé? A ideia de que o erro valida a reação de vingança ou desforra funciona bem onde a lei não existe, como nos filmes de faroeste, mas não vai construir uma sociedade muito melhor que esta a que já estamos habituados, e que está longe de ser civilizada, ou segura.

Não querendo comparar a cena da cerimônia do Oscar com um partido nazista, a diferença categorial, ao menos, é a mesma. Um sujeito se acha no direito de emitir uma opinião ou fazer uma piada detestável. Sim, ele deve sofrer as consequências do mau uso da sua liberdade de expressão. Se essas consequências, por outro lado, forem desproporcionais e ilegítimas, elas ferem não só a liberdade de expressão como também a segurança. Não sabemos mais o que um comentário pode fazer, e passamos a temer os obviamente inadequados, e outros que talvez fossem adequados... A coisa fica muito complicada. Por outro lado, para quem aplaudiu o gesto de defesa da honra do marido em favor da esposa – supondo não se tratar tudo de uma peça hollywoodiana em favor da audiência –, é bom lembrar que quem cala as vozes incômodas e dissidentes costumam ser os regimes mais perversos. É o caso de pensarmos cuidadosamente de que lado estamos, e se vale a pena tomar lado e partido rápido demais, sem pesar todas as implicações.

O simples fato de termos tantas polêmicas envolvendo celebridades influentes deveria chamar (muito) a nossa atenção. O que está acontecendo? O que está por trás da avalanche de “escorregões”, constrangimentos e concessões às posições e atitudes mais estranhas? Isso teria alguma coisa a ver com o fato de que programas de debates e notícias passaram a conter discussões aos gritos, em que três ou quatro pessoas falam ao mesmo tempo sem que haja ninguém escutando? Teria a ver com o fato de o público ter passado a preferir isso a uma exposição comedida dos fatos e possíveis interpretações? Ou teria a ver com o fato de que até chefes de Estado e altas autoridades falam palavrões em qualquer ambiente e batem boca no Twitter? Ou, quem sabe, teria antes a ver com o fato de que o cérebro humano não foi capaz de se adaptar ao novo cenário de hipervisibilidade e hipertransparência criado pelas redes sociais e pelas novas mídias? Será que as tecnologias e inovações sociais que permitem reações instantâneas a tudo criaram um bypass do lobo frontal e nos permitiram usar as áreas mais primitivas e instintivas do cérebro na comunicação de massa?

Seja como for, enquanto entendemos os porquês do nosso descenso a novos patamares de vulgaridade, brota com maior força a saudade dos bons exemplos, das boas referências, dos heróis, das discussões edificantes, da sabedoria, da beleza, da prudência – em uma palavra, da virtude.

Humberto Schubert Coelho é professor de Filosofia na Universidade Federal de Juiz de Fora.

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