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Cada geração tem direito a um grande erro – desde que não seja o mesmo. Tudo o que nos perturba neste momento já aconteceu antes, já foi experimentado, visto, revisto com pequenas diferenças. Nossa desgraça é a incapacidade de processar as mutações da realidade e assim localizar e reconhecer as referências com a rapidez necessária para acionar os alarmes. E assim, por default, embarcamos num sonambulismo protetor, confortável, como se fôssemos neófitos.

Não somos: as atuais turbulências já se manifestaram com arranjos assemelhados em inúmeras ocasiões no passado recente, mas os aplicativos utilizados parecem descalibrados.

A atual conflagração é abrangente, endógena, múltipla e multipolar: temos guerras com diferentes intensidades em diferentes partes do mundo, as recessões não se limitam à América do Sul, nem apenas às economias emergentes. A visível recuperação norte-americana pode ser abalada pelas vacilações chinesas ou pelos desdobramentos da campanha eleitoral em 2016.

A catástrofe dos refugiados parece ter sido apontada intencionalmente para os pontos mais vulneráveis da União Europeia: os Bálcãs (há dois séculos convertidos em sinônimo de fragmentação e xenofobia) e os parceiros da antiga Cortina de Ferro sem grande apego à democracia, ao humanismo, por isso mais suscetíveis às tentações totalitárias.

Nunca demos a necessária atenção ao fascismo

Não esqueçamos que a Hungria, atual vilã na tragédia dos refugiados, só foi “invadida” pelos nazistas nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, e até então era parceira de suas barbaridades. A cada lance deste novo êxodo num continente destinado a eliminar guerras e fronteiras, ficam visíveis as semelhanças com as expulsões no Leste Europeu pré-1939 e o extermínio perpetrado em seguida. Antes as vítimas foram os ciganos e os judeus, agora são os curdos, yazidis e outras minorias étnicas abominadas tanto pelos fundamentalistas islâmicos como por países com pretensões hegemônicas regionais como a Turquia.

No entrelaçamento de complexidades, por ironia, a distração maior relaciona-se com nossa irreprimível atração pelo abismo. Convivemos com ele sem saber identificá-lo: marcados pela sucessão de golpes castrenses desde a implantação da República e, sobretudo, pelo horror à ditadura militar, imaginamos que a inexistência de fantasmas fardados retira da situação presente qualquer periculosidade.

Nunca demos a necessária atenção ao fascismo: com as bênçãos de seculares tradições esquecemos a força maléfica da Ação Integralista Brasileira, seu papel na proclamação do Estado Novo, sua tentativa de golpe no ano seguinte e na sustentação da paranoia militar. Não percebemos que a maior aposta fascista reside no desgaste das instituições democráticas decorrente da intensa polarização política. Um regime atordoado, dominado pelo sectarismo e associado a um projeto de poder enferrujado é o caldo de cultura ideal para um neototalitarismo conservador com seus irresistíveis apelos à ordem e bons costumes.

A onda fascista atual, ao contrário da anterior do início do século passado, espalha-se pelo mundo, personificada por figuras bem-sucedidas como o bilionário Donald Trump, a família francesa Le Pen, a revelação de estadista, o húngaro Victor Orban. Gente “normal”, aparentemente confiável, bem-falante, crente, sem exibir aberrações demoníacas de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Anestesiados pela incrível sucessão de sustos e emoções, não distinguimos a beira do abismo. Na era da informação, não podemos alegar falta de conhecimento. Muito menos o indisfarçável bocejo de tédio.

Alberto Dines é jornalista.
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