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Já se tem notícias de várias decisões proferidas em sede de liminar que, calcadas em princípios de justiça, acabam por interferir em relações privadas.
Já se tem notícias de várias decisões proferidas em sede de liminar que, calcadas em princípios de justiça, acabam por interferir em relações privadas.| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Em 1849, Frédéric Bastiat, um economista francês, escreveu uma pequena obra que, passados mais de 150 anos, ainda é muito atual. No escrito (O que se vê e o que não se vê), Bastiat afirma que, no campo da economia, uma lei dá nascimento não apenas a um efeito, mas a uma série de efeitos. Desses efeitos, apenas o primeiro é imediato: ele se manifesta simultaneamente com sua causa – é o que se vê. Os outros efeitos, que se desdobram em sucessão, são o que não se vê. Ele afirma que, na maioria das vezes, quando as consequências imediatas são favoráveis, as últimas são fatais. Isso explica por que a humanidade age em vista das primeiras consequências, pois são as únicas que no primeiro momento são vistas.

Para exemplificar esse entendimento, o economista aborda o problema da “janela quebrada”. Linhas gerais, quando uma janela de vidro é quebrada acidentalmente, a consolação do prejudicado se dá pela indagação: “O que seria dos vidraceiros se os painéis de vidro nunca fossem quebrados?” Isso é o que se vê. Por outro lado, o que não se vê é que o gasto para consertar a janela poderia ter sido empregado em outra coisa (ele exemplifica que o prejudicado poderia ter adquirido livros novos para sua biblioteca, ou comprado pares de sapatos novos, incentivando outros setores da atividade empresarial). Essa segunda parte é aquilo que não se vê.

Trazemos a ideia acima para o ano de 2020, momento em que o mundo se depara com a pandemia do coronavírus – que, neste momento, dispensa apresentações dos efeitos que vem causando em nível global. As consequências disso tudo, por outro lado, ainda serão conhecidas.

Já se tem notícias de várias decisões proferidas em sede de liminar, mormente por juízes de primeira instância, que, calcadas em princípios de justiça (que são verdadeiros consensos sobrepostos, dados que aceitos por diferentes correntes de pensamento), acabam por interferir em relações privadas, alterando significativamente o equilíbrio econômico dos contratos. Como se sabe, a função econômica do contrato (que não é a única, diga-se) representa os contributos econômicos que as partes podem esperar como efeitos decorrentes da relação negocial pactuada.

Mas, como sabido, vivemos tempos de pandemia e, por isso, a suspensão de pagamento de aluguéis (ou ao menos de parte deles), por meio de uma decisão judicial costuma ser aplaudida pela sociedade e por grande parte dos juristas. Isso porque a decisão supostamente restabelece o equilíbrio econômico da avença que foi afetado em virtude da Covid-19. O locatário, então, evocando o caso fortuito/força maior, ou, ainda, a onerosidade excessiva/teoria da imprevisão, consegue, por meio do Estado, furtar-se ao bom adimplemento contatual. A consequência imediata, isto é, o alívio nas contas do locatário, é o que se vê. E, como consequência imediata, ela é favorável.

Mas e o que não se vê? O mesmo Bastiat já dizia que o erro começa quando se diz que o sacrifício é uma vantagem porque beneficia alguém (no nosso exemplo, o benefício ao locatário ao custo do sacrifício do locador). É que visões “justiceiras” têm custos sociais não negligenciáveis, dado que não há justiça distributiva gratuita que não demova ou inviabilize transações. No caso, o que não se vê é que decisões como tais geram incentivos para outros players do mercado. Como se sabe, as pessoas agem, pelo menos em regra, visando otimizar seus benefícios (a métrica da ciência econômica é a utilidade). Logo, não se pode negar que tais liminares podem gerar comportamentos oportunistas em outros locatários que, mesmo não impossibilitados de bem cumprir o avençado, preferem recorrer ao Judiciário, certos de que contarão com a complacência deste para o inadimplemento do anteriormente acordado.

Esse comportamento oportunista é definido por Fernando Araújo, em seu texto “Uma análise econômica dos contratos – a abordagem econômica, a responsabilidade e a tutela dos interesses contratuais” como o fato de uma das partes, ou até ambas reciprocamente, poderem fazer degenerar a prometida conduta de cooperação numa conduta de apropriação de ganhos à custa dos interesses e expectativas da outra parte.

Por outro lado, não se quer, com isso, que o pacta sunt servanda seja levado às últimas consequências, mesmo que isso provoque a ruína no devedor. Não é isso. Lembremos do novo parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, inserido pela Lei da Liberdade Econômica, que determina a excepcionalidade da revisão contratual, em homenagem ao Princípio da Intervenção Mínima, dado que os contratos civis e empresariais se presumem (é uma presunção relativa) paritários e simétricos.

O que se propõe aqui é que, levando em consideração a paridade das partes em contratos dessas espécies, seja deixado a elas o exercício da autonomia privada para que bem renegociem o outrora pactuado, chegando a decisões consensuais. Isso porque decisões tomadas em conjunto, mediante uma negociação cooperativa, tendem a ser mais bem aceitas pelas partes, aumentando a satisfação dos negociantes e diminuindo as chances de inadimplemento. Apenas em casos deveras excepcionais os termos das repactuações devem ser impostos por um terceiro – no caso, o Poder Judiciário.

Quando buscam a justiça social por meio de decisões judiciais, os juízes estão mandando sinais e afetando expectativas e comportamentos dos agentes econômicos. Porém, e isso é o que não se vê, tais decisões, num segundo momento, fazem com que tais agentes econômicos se adaptem à forma de decidir do Judiciário, para o bem e para o mal (decisões que favorecem inquilinos diminuem o número de imóveis disponíveis para aluguel, por exemplo).

Assim, parece-nos que chegou a hora de os juízes enxergarem a floresta, e não apenas a árvore.

*Maruan Tarbine é advogado com MBA em Governança Tributária e pós-graduado em Direito, Inovação e Tecnologia.

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