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Comércio fechado em meio ao lockdown.
Comércio fechado em meio ao lockdown.| Foto: Lineu Filho /Tribuna do Paraná

Lockdown funciona?” Esta é umas das questões ligadas à pandemia de Covid-19 que geram os mais acalorados debates. Para responder a essa questão, é necessário recorrer a alguns conhecimentos da epidemiologia. Além disso, como em qualquer argumentação cientifica, é necessário que nosso objeto em questão, isso é, o lockdown, esteja bem definido.

Vamos começar pela questão epidemiológica. Uma doença como a Covid-19, causada por um vírus respiratório, o Sars-CoV-2, é transmitida de indivíduo para indivíduo por contato direto. Em princípio, o vírus também pode ser transmitido por contato com superfícies contaminadas e aerossóis que estão no ar. No entanto, o Centro para Controle de Doenças norte-americano (CDC) e a Organização Mundial de Saúde consideram que a transmissão da Covid-19 acontece principalmente por contato direto entre indivíduos, embora também reconheçam a possibilidade de transmissão por superfícies e pelo ar contaminado com aerossóis, sobretudo em locais fechados.

A hipótese de que o principal meio de propagação da Covid-19 seja o contato direto entre indivíduos fundamenta a maior parte das intervenções de distanciamento social impostas pelos governos. Se esta é a principal forma de transmissão, então a transmissão da doença poderia em tese ser barrada ou desacelerada por qualquer política que implicasse na diminuição de contatos entre indivíduos ou na redução da probabilidade de contaminação nos contatos entre indivíduos. Portanto, neste caso, a epidemiologia estabelece duas estratégias complementares de diminuir a propagação de uma epidemia: 1. pela diminuição de contatos entre as pessoas; 2. pela diminuição da probabilidade de contaminação quando os contatos diretos entre as pessoas são inevitáveis.

Intervenções governamentais que proíbem atividades que geram aglomerações, ou que proíbem a abertura do comércio dito “não essencial”, ou que impõem o fechamento de escolas, toques de recolher e restrições de circulação, são todas intervenções que buscam, à força, diminuir o contato entre as pessoas (estratégia 1). Por outro lado, intervenções que obrigam os cidadãos a usar máscaras em locais fechados e/ou abertos buscam a diminuição da probabilidade de contaminação por contato direto (estratégia 2). Se aceitamos a hipótese de que o principal meio de propagação da Covid-19 é o contato direto, e aceitamos a hipótese de que as intervenções governamentais são efetivas na implementação das estratégias 1 e 2, então decorre logicamente das premissas que a intervenção governamental produz efetivamente a diminuição do número de novas infecções, suprimindo ou mitigando a epidemia. A efetividade dessa diminuição de novas infecções dependerá da efetividade somada de todas as intervenções governamentais, podendo ser maior ou menor dependendo de vários fatores.

É muito importante perceber que, na realidade, a causa primária da diminuição de novas infecções não é a intervenção governamental, mas sim a mudança de comportamento dos indivíduos. A intervenção governamental é uma forma de forçar essa mudança de comportamento, e poderíamos nos questionar até que ponto ela é eficaz ou desejável em uma sociedade livre. Se os indivíduos optassem livremente por mudar de comportamento, por pura disciplina consciente e conhecimento perfeito de todos os protocolos, então simplesmente não seria necessária nenhuma intervenção governamental, a não ser, talvez, fornecendo subsídios para apoiar o desejo da população.

Vamos, agora, responder à segunda questão: o que é lockdown? A bem da verdade, a palavra lockdown tem sido utilizada de maneira frouxa para significar vários tipos de intervenção governamental que implicam em restrições compulsórias de circulação, comércio e associação de pessoas. Para fins práticos, vamos então definir lockdown deste modo, ou seja, qualquer conjunto de medidas ou intervenções governamentais que envolvem restrições compulsórias de circulação, comércio e associação de pessoas. Essa definição confere uma distinção entre lockdown e “distanciamento social”, pois em princípio este último poderia ser instituído por adesão voluntária ou estímulos governamentais, enquanto o primeiro é sempre imposto. Evidentemente, o grau e extensão do lockdown pode variar muito, de modo que podemos falar em lockdowns menos ou mais restritivos.

Com todos esses elementos em mãos, podemos compreender que nem sempre o lockdown funciona. Por exemplo, um governo poderia por decreto mandar fechar todo comércio que considera não essencial e proibir cultos e aglomerações em espaços públicos. No entanto, os cidadãos poderiam respeitar os decretos, mas continuar se reunindo com frequência nas casas, com amigos, inclusive aumentando a frequência de festas privadas. Neste caso, o efeito desejado pelos formuladores da política corre o risco de ser enfraquecido ou anulado pela não conformidade da população. Portanto, a adesão da população é condição necessária para a efetividade do lockdown.

Em uma situação limite, em que o governo tivesse total controle sobre o comportamento dos cidadãos, é evidente que um lockdown teria uma efetividade proporcional à intensidade das medidas restritivas. O que traz complexidade ao problema do mundo real está em dois fatores: 1. a adesão imperfeita dos cidadãos às medidas e 2. as implicações negativas legais, econômicas, materiais e psicológicas das medidas restritivas. A adesão imperfeita dos cidadãos às medidas impostas raramente é um problema moral, mas frequentemente um problema social. Em um país como o Brasil, por exemplo, o apoio comunitário entre membros próximos de uma comunidade e a coexistência de idosos com seus filhos e netos é um fator que alivia a pobreza e a vulnerabilidade social. Para esses estratos da sociedade, o efeito desejado de intervenções governamentais mais restritivas pode ser simplesmente inalcançável. Portanto, tanto a arquitetura das políticas públicas de intervenção quanto as análises científicas sobre sua eficácia precisam levar em conta fatores sociais e culturais.

Até aqui desenvolvemos um raciocínio dedutivo, racionalista, e o mais “empiristas” poderiam questionar: “mas o que dizem os dados?”. Há vários estudos empíricos, que vamos discutir a seguir, mas, para interpretar corretamente os resultados, temos de entender que a evolução epidêmica, em qualquer país, acontece de forma não controlada. A experimentação, que é um importante pilar do método científico, necessita de condições experimentais controladas para produzir conclusões inequívocas. Estatísticas baseadas em dados do histórico da epidemia de muitos países são úteis e válidas, mas devem ser analisadas com cautela, pois podem não ter informação suficiente para separar a contribuição de cada tipo de intervenção.

Em artigo recente, a Gazeta do Povo abordou um trabalho que saiu na revista Nature Human Behaviour, que acredito ser um dos estudos mais rigorosos e completos já publicados. Este estudo usa um banco de dados contendo informações sobre diversas classes de intervenções governamentais, agrupando-as em oito classes principais, tais como distanciamento social, comunicação sobre riscos, restrição de viagem, rastreamento e testagens, investimento no sistema de saúde, entre outros grupos. O estudo considera ainda diferentes níveis dentro de cada uma dessas classes, sendo capaz de avaliar, por exemplo, quais medidas de distanciamento social tiveram maior contribuição na redução da propagação da epidemia. A partir de várias análises estatísticas, o estudo conclui que as medidas de distanciamento social, restrições de viagem, investimento em sistema de saúde e comunicação de riscos foram as que tiveram maior impacto na redução da propagação da epidemia na primeira onda em 2020, mas nenhuma intervenção foi capaz de suprimir sozinha a epidemia. Conclui-se, portanto, que apenas medidas de distanciamento social podem não ser suficientes.

Apesar disso, o estudo concluiu que o distanciamento social foi a classe de medidas com maior impacto, destacando-se as intervenções voltadas à diminuição de aglomerações pequenas. A adoção do teletrabalho, por exemplo, é uma medida de diminuição de aglomerações pequenas.

É interessante notar que a imposição de um “lockdown nacional” teve um efeito marginal pequeno sobre outras medidas de distanciamento social. Isso corrobora a tese de que mais importante do que lockdown por lockdown é garantir a diminuição de contatos entre pessoas em locais aglomerados, em especial pequenas aglomerações. Portanto, se uma intervenção consegue atingir esse fim sem precisar decretar um lockdown total, ela ainda assim será efetiva, mas com menor prejuízo econômico.

Há, ainda, outro resultado interessante: a comunicação de riscos sobre a epidemia teve, no conjunto dos países analisados, impacto apreciável sobre a diminuição da propagação da epidemia. Esse resultado corrobora a tese de que a mudança do comportamento das pessoas é um fator essencial. Uma campanha ampla e bem-organizada de conscientização é um bom exemplo de medida governamental efetiva, pouco intrusiva e relativamente barata. O estudo ainda demonstra que o fechamento de fronteiras é um fator importante, assim como a disponibilidade de equipamento de proteção individual.

Os dados mostram que, na média de todos os países que divulgaram informação sobre suas intervenções, há correlação entre intervenções governamentais e diminuição da velocidade de propagação da epidemia. No entanto, não é o lockdown propriamente dito que funciona, mas sim a mudança de comportamento da população. A grande questão que deve ser endereçada pelos formuladores de políticas públicas, interessados em combater a epidemia de modo inteligente, é: quais são as intervenções mais efetivas e eficazes, com menor impacto econômico e menor prejuízo às liberdades individuais? Para responder a essa questão é imprescindível que os políticos sejam auxiliados pela comunidade científica, e que a comunidade científica consiga articular e integrar os conhecimentos das diversas áreas – epidemiologia, infectologia, biologia, matemática, estatística, economia, sociologia, filosofia etc.

Marco Antonio Ridenti é doutor em Física e docente no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Dedica suas atividades de pesquisa à compreensão da natureza por métodos teóricos e experimentais, e recentemente tem se dedicado ao estudo de epidemiologia matemática.

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