• Carregando...
Pedestre usando máscara de proteção contra o coronavírus passa por lojas fechadas na Oxford Street, centro de Londres, durante terceiro lockdwon nacional no Reino Unido, 15 de janeiro
Pedestre usando máscara de proteção contra o coronavírus passa por lojas fechadas na Oxford Street, centro de Londres. Imagem ilustrativa.| Foto: Tolga Akmen / AFP

Praticamente todas as principais cidades do país começaram uma nova rodada de isolamento social. Segundo seus defensores, o confinamento da população é a única saída para conter o avanço da pandemia de Covid-19. O argumento é sempre o mesmo: a invocação da ciência enquanto entidade materializada, que nos diz o quê, quando e como fazer algo. Podem convencer boa parte da população com esse tipo de retórica, mas nós, médicos, lidamos diariamente com a ciência e sabemos que ela é um método, um meio para se chegar a algo, jamais uma verdade absoluta. A verdade é para os deuses; ciência é aquilo que pode ser refutável.

Digo isso para pontuar algo importante: como em toda questão humana, a decisão final é sempre política. A ciência pode auxiliar o entendimento de um problema, o esclarecimento de um cenário, mas a decisão sobre o que fazer é fundamentalmente política. A própria OMS, baluarte desse discurso tecnocientífico, funciona em um formato de conselho; cada decisão ali tomada passa por longas reuniões, formação de comissões, plenários, até se chegar a um denominador comum. Se as decisões fossem meramente científicas, bastavam os relatórios dos pesquisadores indicando o que deveria ou não ser feito com o problema A ou B.

Existe, ainda, um outro aspecto científico convenientemente ignorado pelos apoiadores do lockdown: para determinado problema podem existir diferentes soluções. Isso fica bem claro quando olhamos para países como o Japão, onde não houve lockdown e os números são muito melhores que os do Brasil. Recordo-me do exemplo da pandemia do HIV na década de 80; naquela época, como agora, inicialmente o pânico foi geral. Acreditavam que a Aids era um castigo divino contra a liberdade sexual dos anos 60 e 70. Quiseram proibir o sexo, enquanto os mais extremados queriam prender ou exterminar todos os gays. Nenhuma dessas “soluções” foi adiante. Optou-se pela adoção da camisinha como método preventivo, com uma ampla campanha pública de conscientização. Priorizou-se a liberdade individual enquanto valor, e as pessoas continuaram tendo suas relações com as precauções que julgassem necessárias.

A propósito, a ausência total de valores talvez seja o aspecto mais crítico no enfrentamento da pandemia. O desrespeito às liberdades individuais, à propriedade privada e à livre iniciativa criou um cenário de insegurança jurídica e econômica que levou à escassez de insumos importantes, como testes, álcool em gel, luvas e respiradores, além de provocar desemprego em massa com o fechamento das atividades econômicas. Afinal, quem vai investir em um cenário tão desesperador e intervencionista? E se as empresas não funcionarem, de onde o Estado vai recolher impostos para bancar os tais auxílios emergenciais? A conta não fecha.

Ninguém contesta a seriedade do problema ou o perigo do vírus. A pandemia é real e deve-se adotar todas as medidas preventivas: higienização das pessoas e ambientes, testagem em massa, isolamento social dos grupos de maior risco, vacinação etc. O que não se justifica é abrirmos mão de nossa liberdade, de nossa capacidade produtiva, de nossos valores socioculturais, como se fossem coisas de menor importância. Se é verdade que vivemos uma guerra contra o coronavírus, então deveríamos estar trabalhando dobrado para conseguirmos vencer essa guerra, e não simplesmente nos escondendo dentro de casa. É justamente nos momentos de dificuldade que temos de nos tornar mais produtivos, aguerridos, para conseguir nos proteger e aos mais vulneráveis.

Lembro que não é apenas o vírus que mata. Cresce o número de pessoas que apresentam algum transtorno mental grave por causa do isolamento social e do terrorismo midiático. Depressão, ansiedade, síndrome do pânico e episódios de suicídio são alguns dos quadros mais frequentes, mas não os únicos. A pobreza, a miséria generalizada também mata. Cresce o número de casos de violência doméstica, de crianças com algum problema de desenvolvimento por causa da interrupção das aulas, principalmente as mais pobres, que dependem da alimentação das escolas públicas. É no mínimo desonesto ignorar essas estatísticas ao analisar o problema.

Parece-me inegável que a pandemia adquiriu um perigoso contorno político. Em vez de um real interesse em resolver o problema, mídia, governadores e prefeitos estão fazendo uso político da situação para pressionar o governo federal. Esse confinamento da razão e do bom senso me parece mais perigoso que o próprio vírus, pois pandemias vêm e vão na história da humanidade. Mas, quando uma civilização perde seus valores, sua decadência é quase sempre irreversível.

Luiz Fernando Pedroso é psiquiatra e diretor clínico da Holiste Psiquiatria.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]