• Carregando...

Evitar uma nova Hong Kong às portas da Bacia do Prata, com o ir e vir de navios com bandeira de conveniência, outra invenção solerte do colonialismo predatório, é medida legítima e incontestável

O primeiro ministro britânico, David Cameron, inconformado com a recente decisão dos países do Mercosul de banirem de seus portos navios com bandeira das Ilhas Falkland, acabou por expressar-se de forma incorreta sobre o tema, a revelar voluntarismo anacrônico e superado na moderna relação entre Estados. Infelizmente, o residente de Downing Street n.º 10 não foi ao fundo da questão para explicar quais seriam os porquês jurídicos de tais Ilhas Falklands; ou, se ao contrário, as ilhas controversas seriam sempre Les Malouines, descobertas pelos franceses, ocupadas pelos sul-americanos no século 18 e em seguida arrebatadas e mantidas manu militari pelo colonialismo inglês. Cameron manifestou-se apenas sobre a forma da decisão, ao afirmar que não é para isso que existe o Mercosul. Arvorou-se, assim, em professor de integração e de blocos econômicos, coisa que sabidamente tem demonstrado não ser, a julgar-se pela atitude de seu governo na última cimeira da União Europeia: contra todos e contra tudo, foi voz isolada nos compromissos para a salvaguarda do Euro e da governança comunitária, em solene posição de dane-se a Europa.

Questões derivadas do espólio imperiais não são fáceis. Em disputas de territórios originadas na partilha do mundo pelo colonialismo, verifica-se não apenas o rastro de sangue, mas ainda o recorrente dilema de direitos conflitantes, em que todas as partes parecem ter alguma razão. No caso presente, eventuais direitos britânicos poderiam até ser postulados, apesar do manifesto caráter das Falklands como enclave colonial no coração da América do Sul. Bastaria considerar-se, por exemplo, o direito a autoderminação dos kelpers, a população não autóctone, mas trazida pelos ingleses às Malvinas, que por óbvio querem continuar como estão. Trata-se de argumento a ser sopesado dentre outros fatores que também condicionam o conflito. Porém, todo o contraditório só poderia ser estabelecido a partir de diálogo a que os ingleses se negam, de forma unilateral e peremptória, sem o respaldo das Nações Unidas. De fato, há toda uma gama de decisões da ONU a exortar Londres e Buenos Aires a "sem demora prosseguirem nas negociações", desde a Resolução 2.065, de dezembro de 1965. Tal atitude, que desconsidera as profundas mudanças ocorridas na América Latina, embasa-se no sofisma de não negociar-se porque as ilhas foram invadidas por generais ditadores. Hoje, em outro momento histórico, tal omissão britânica é ilegal e irreal, a fazer dos ingleses ocupantes precários do que não lhes pertence, sem direito e sem razão.

A recente decisão dos presidentes dos países do Mercosul, de iniciativa do uruguaio Pepe Mujica, com adesão da opinião pública regional, assinala o fim da mera retórica de apoio à Argentina. Deixam-se as palavras e passa-se à ação. Evitar uma nova Hong Kong às portas da Bacia do Prata, com o ir e vir de navios com bandeira de conveniência, outra invenção solerte do colonialismo predatório, é medida legítima e incontestável. No outro lado da medalha, remanesce a triste memória do colonialismo europeu, de endereços históricos trágicos, como o Congo belga, a Eritreia italiana ou a Palestina abandonada à sua sorte. Nesse choque de posições, não parece penoso perceber a quem assiste razão.

Embora tenhamos interesses cada vez mais valiosos e cobiçados em nossos espaços marinhos, vivemos na região do mundo que menos gasta em orçamento militar, em proporção ao poder nacional de seus membros. Agora, a exploração ilegal de recursos naturais realizada pelos britânicos nas Ilhas Malvinas sem mais cerimônias, ao arrepio de decisões das Nações Unidas, demonstra como é urgente a composição do Brasil com seus vizinhos, de forma a construir-se política comum de defesa estratégica do Atlântico Sul. Nesse sentido, as primeiras braçadas já se fazem sentir.

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é ex-presidente do Tribunal Permanente do Mercosul.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]