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Nesta sexta-feira, dia 17, recorda-se os exatos 70 anos da abertura da Conferência de Potsdam, a segunda cúpula dos “Três Grandes” de 1945. No castelo de Cicilienhof, Josef Stalin, Harry Truman e Winston Churchill (logo substituído por Clement Attlee) deram o passo inicial na trajetória que conduziria, quatro anos depois, à bipartição da Alemanha. Hoje, na hora da crise do euro, a “questão alemã” volta a atormentar a Europa. Um sintoma disso apareceu na capa do jornal Bild logo depois do referendo grego. “Precisamos de uma chanceler de ferro!”, alertava a manchete, ilustrada por uma foto de Angela Merkel usando o antigo capacete militar de Otto von Bismarck.

A partição da potência em dois Estados e, na sequência, a incorporação da República Federal da Alemanha (RFA) ao projeto de uma Europa supranacional ofereceram uma solução para a “questão alemã”, afastando o espectro bismarckiano da hegemonia germânica sobre a Europa. No lugar de uma “Europa alemã”, Konrad Adenauer, o primeiro-ministro do pós-guerra, comprometeu-se com a ideia de uma “Alemanha europeia”. A transição de um conceito a outro consagrou a substituição da rivalidade franco-alemã por uma aliança estratégica entre as duas potências engajadas na aventura da unificação europeia.

Na equação da estabilidade geopolítica introduziu-se uma nova variável com o encerramento da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim. A reunificação alemã, no aniversário de 45 anos da Conferência de Potsdam, reativou os traumas franceses. François Mitterrand, o presidente da França, e Helmut Köhl, o chanceler da Alemanha, solucionaram o dilema por meio de uma nova injeção europeísta: o Tratado de Maastricht, da união monetária. “Toda a Alemanha para Köhl, metade do marco alemão para Miterrand” — a síntese galhofeira da época captou a essência do projeto do euro. A soberania compartilhada sobre a moeda reafirmaria a ideia da “Alemanha europeia”, conservando numa garrafa hermeticamente fechada o gênio maligno do nacionalismo alemão.

A Alemanha fez a lição de casa que não foi feita pela França nem pelos países endividados do sul da Europa

“Merkozy”, o líder de duas cabeças, as de Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, metáfora da aliança, em pé de igualdade, entre Alemanha e França, funcionou como representação da primeira década do euro. Contudo, sob o impacto da crise financeira, desfizeram-se as nuvens da ilusão e, aos olhos de todos, descortinou-se uma paisagem mais realista. Nos últimos cinco turbulentos anos, o comboio da União Europeia (UE) passou a ser dirigido por um único motorista. Ironicamente, a união monetária resultou numa “Europa alemã” liderada por uma “Alemanha europeia”. Atrás de Merkel, avulta a imagem de Bismarck – ou, segundo a tradução difamante da extrema-esquerda europeia, a de Adolf Hitler. Nessas associações, encontra-se a raiz do impasse que ameaça o futuro da UE.

A Alemanha fez a lição de casa que não foi feita pela França nem, muito menos, pelos países endividados do sul da Europa. O social-democrata Gerhard Schröder, antecessor de Merkel, obteve o consentimento dos sindicatos para um conjunto de reformas destinadas a reduzir os gastos sociais e aumentar a competitividade da indústria alemã. Na primeira década do euro, enfrentando as dificuldades postas pela “globalização chinesa”, a Alemanha ampliou suas exportações e invadiu os mercados dos sócios europeus. A crise das dívidas na zona do euro reflete, basicamente, os diferenciais de produtividade entre as economias fixadas na abóboda da moeda comum. Hoje, a receita de Merkel para a “doença europeia” está sintetizada na exigência de que os sócios endividados copiem, rapidamente, a lição de casa concluída há tempo pelos próprios alemães.

“Imperialismo pedagógico” – eis o qualificativo cunhado pelo semanário Der Spiegel para a política europeia de Merkel. Frequentemente, a chanceler argumenta a partir de um terceto: a Europa abriga 7% da população mundial e responde por 25% do PIB global, mas é responsável por 50% dos dispêndios planetários em welfare. Sua pedagogia é um esforço para convencer os sócios da UE de que essas relações não são sustentáveis e, ainda, de que a manutenção das redes europeias de proteção social depende de fortes incrementos de produtividade. As resistências às reformas estruturais, na Grécia e nos partidos esquerdistas inflamados pelo exemplo do Syriza, assumiram a forma perigosa de uma reação à “Europa alemã”.

Adenauer foi o chanceler do lançamento do sonho europeu e Köhl, o de sua consolidação. Merkel, a sucessora dos dois líderes democratas-cristãos, não quer sedimentar-se nos manuais históricos como a responsável pela implosão do edifício da Europa. Na tradução do governo do Syriza, isso significa que a chanceler faria quase qualquer coisa para evitar a saída grega da zona do euro. Contudo, a tradução certa é diferente, pois a Europa de Merkel repousa sobre a inviolabilidade das regras, não sobre uma coleção de países. Para ela, se o preço da manutenção das regras é a saída grega, vale a pena pagá-lo.

O resultado do referendo na Grécia não foi celebrado apenas pelos partidos de extrema-esquerda, como o espanhol Podemos, mas também por partidos da direita antieuropeia como a Frente Nacional francesa e o Ukip britânico. Além disso, a encruzilhada grega descortinou as tensões políticas que cercam a aliança franco-alemã. Quando o Bild encheu sua capa com a figura de “Bismerkel”, apoiando a rejeição alemã às demandas da Grécia, o primeiro-ministro francês Manuel Valls declarou que “sobre a dívida grega não existem tabus”. A clivagem, que se estende da França para a Itália, nutre-se dos anos de depressão econômica e dos ressentimentos acumulados com o “imperialismo pedagógico” alemão.

O edifício da Europa desabaria sem a liderança alemã. Mas não resistirá à identificação da chanceler de uma democracia parlamentar com o chanceler de ferro da Prússia imperial. Merkel tem um enigma a decifrar.

Demétrio Magnoli é sociólogo.
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