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Como você, mulher, se sentiria se todas as pessoas ao seu redor, na escola, no trabalho, na unidade de saúde, no banco, nas lojas, os amigos, se referissem a você por “ele”, por João? Ou você, sendo um homem, ser chamado de Maria, de “ela”? Como as pessoas que vissem ou ouvissem isso reagiriam? Provavelmente, num primeiro momento, você pudesse achar estranho, mas, em seguida, se sentiria constrangida(o), irritada(o), desrespeitada(o), sofreria com os olhares alheios, com a violência.

Diante dessa situação nos incomodamos, mas por que não nos incomodamos quando pessoas travestis e transexuais passam cotidianamente por situações desse tipo? Ao contrário, o respeito ao nome social, ao nome pelo qual as pessoas trans se identificam, é que causa incômodo. Parece não ser possível conviver com o que é “diferente”, com o que “desvia” da norma. O “diferente” parece desestabilizar o que é naturalizado, ou seja, a relação entre sexo biológico e gênero. Essa “diferença” se torna problemática quando se torna desigualdade social, desigualdade de direitos.

É importante destacar que, conforme o entendimento de diversos pesquisadores e pesquisadoras da área, entidades científicas e de classe, como o Conselho Federal de Psicologia, essa relação não é natural, mas produzida social e culturalmente e a não correspondência entre sexo biológico e gênero, portanto, não é uma doença ou “aberração”, mas sim mais uma forma de ser e estar no mundo.

O “diferente” parece desestabilizar o que é naturalizado, ou seja, a relação entre sexo biológico e gênero

Visando à garantia de direitos para as pessoas trans, no dia 28 de abril a presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto Presidencial 8.727, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

A questão do atendimento acolhedor e livre de discriminação nas diversas políticas públicas da educação, assistência social, trabalho, cultura e saúde, entre outras, busca garantir que o usuário ou usuária tenha um campo para registrar o nome pelo qual prefere ser chamado, independentemente do registro civil. Com isso, travestis e transexuais, que possuem um nome que remete ao seu sexo biológico no registro civil, devem ser tratadas pelo seu nome social, que condiz com a sua identidade de gênero, evitando, assim, constrangimentos e proporcionando que se sintam mais acolhidas nos serviços.

No entanto, há a necessidade, por um lado, de uma maior capacitação dos profissionais sobre as resoluções e políticas que abordam o assunto, pois não basta criar um documento, enviá-lo para os serviços e não haver a garantia de que os profissionais da ponta tenham conhecimento deles; por outro, constata-se, por mais importante que seja essa lei, que a garantia do nome social não basta para a efetivação de um direito, uma vez que esbarra na estigmatização e discriminação relacionadas à identidade de gênero. Há casos de profissionais que se recusam a chamar pelo nome social, porque no RG consta um nome masculino ou feminino, como tem acontecido no âmbito da saúde, no qual existe a Resolução 1.820, desde 2009, assegurando o uso do nome social no SUS.

Nesse sentido, para que haja a garantia do direito de ser chamada pelo nome com o qual a pessoa se identifica, é preciso que seja formulada uma lei que permita, sem burocracia, a mudança de nome e sexo em seus documentos, sem a necessidade de passar pelo processo transexualizador. Algumas pessoas travestis e transexuais já o conseguiram, sem precisar passar por esse processo, mas o trâmite para tal mudança ainda é burocrático, lento e, na maioria dos casos, sem um parecer favorável às requerentes. Isso se faz necessário na medida em que as desigualdades na lei podem afetar aspectos fundamentais da vida das pessoas trans e impactar diretamente na sua capacidade de acesso aos direitos humanos.

Para muitas travestis e transexuais, a mudança de nome nos registros civis é fundamental para o exercício de sua cidadania. A mudança no nome evitaria os constrangimentos que vivenciam cotidianamente ao terem de apresentar o documento de identidade, por exemplo, para comprar em crediários, abrir conta em banco, procurar empregos formais, ir aos serviços de saúde etc., trazendo, assim, um maior bem-estar para as suas vidas como um todo. Ou seja, garantiria que os direitos humanos fossem realmente de todas e todos, que o direito à vida fosse de todas e todos.

Grazielle Tagliamento é professora do Programa de Mestrado em Psicologia Social Comunitária da UTP. Rafaelly Wiest é presidente da ONG Transgrupo Marcela Prado.
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