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Artigo

O desconcerto do mundo

Bloquear é a ferramenta mais fácil para ignorar o fato básico de que os outros existem e têm opiniões que nem sempre coincidem com as nossas. (Foto: Bigstock)

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Milan Kundera escreveu um livro chamado A festa da insignificância. Um romance sobre uma geração inteira de heróis autointitulados que acabaram descobrindo, da pior forma possível, que não eram heróis nem vilões, muito menos aquelas pessoas maravilhosas que esperavam ser num futuro glorioso que projetaram para si.

O tempo passou e restou-lhes apenas chorar em cima de uma garrafa de vodca. Tornaram-se tão insignificantes quanto os que passam pelo mundo sem infâmia e sem louvor; como aquelas almas inócuas que Dante viu no inferno e Virgílio o aconselhou: “não perca tempo com elas: olha e passa!”. Mas a nossa curiosidade mórbida nos faz parar, olhar e, enfim, darmos a importância indevida. Porque nossa atenção é sempre disputada por uma diversidade de coisas sem infâmia e sem louvor que o mundo inteiro deveria ignorar.

Para o homem novo, desenraizado, hidropônico, a opinião é a única realidade: opino, logo existo!

Por isso o maior incômodo da nossa época é um certo ecumenismo opinativo. Não existem especialistas numa ou noutra matéria, apenas intelectuais holísticos que falam de tudo e de todos, sempre com aquela profundidade clássica de que falava Nelson Rodrigues: onde uma formiga passa com a água nos joelhos. Precisamos admitir que a internet e, sobretudo, as redes sociais não ampliaram nossos horizontes, apenas nos aprisionaram numa bolha. A ferramenta “bloquear” é o símbolo desta nova era do subjetivismo; afinal, evita a convivência com aquela coisa tão estranha e tão diferente: o outro!

Evoluímos da tal modernidade líquida, de Bauman, onde não há mais valores e tudo é permitido, para a solidificação de uma moralidade negativa, onde tudo é proibido. Cancelam palavras, interditam pensamentos e vedam-se as críticas. Parece não haver mais condições para olharmos para o próximo e perceber o óbvio: ele é outro! Porque assim se manifesta uma sociedade massificada: os valores se diluem para serem fundidos novos, sólidos, robustos, nos grupos de pressão. Não existem mais causas coletivas nem bem comum, só as políticas identitárias com suas regras e, sobretudo, suas proibições. Para servir à causa, é preciso amar as mesmas coisas e odiar as mesmas coisas, o que na verdade é apenas um pretexto para exigir fidelidade de ideias e cumplicidade no ato de odiar alguns inimigos comuns.

Mas o problema maior é o fato de que a nossa geração é ainda mais ousada que Descartes. O pensador francês foi modesto ao condicionar a existência ao seu pensamento: “penso, logo existo!”. Porque para o homem novo, desenraizado, hidropônico, a opinião é a única realidade: opino, logo existo! E, como dizia Gustavo Corção em A Descoberta do Outro, “a opinião é o halo do pequeno-burguês”, pois nesse individualismo burguês “cada um fabrica seu próprio evangelho e cada doutrina é uma linha meridiana passando pelo próprio umbigo”.

O mais individualista dos burgueses, no entanto, necessita do outro: sua opinião não sobrevive sozinha; sua presunção só pode ser exercida na presença do outro. Porém, descobrir que o próximo não é uma estátua pode parecer absurdo a esse homem novo, desenraizado, hidropônico. Conviver com o outro é difícil; então, é mais fácil amar a humanidade em geral para que não se tenha de amar os seres em particular. Porque se o próximo, na sua concretude, é inconveniente, resta-nos voltar nossos bons sentimentos à humanidade, às causas ideologicamente sagradas. E, convenhamos, é realmente mais fácil se importar com os oprimidos abstratos, ou com a ideia de possíveis conspirações ao redor do mundo, que conviver com o vizinho que faz suas lives após as 22 horas, ou com a algazarra das crianças do apartamento de cima.

Diogo Chiuso é editor de livros.

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