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Apesar dos reconhecidos crimes que cometeram, Kadafi, Milosevic e Pinochet terminaram seus dias inocentes, pois, como jamais foram condenados, não podem ser considerados tecnicamente culpados

A morte de Kadafi traz certo alento para os líbios e para a humanidade. É o fim de uma das ditaduras que ainda persistem no mundo e, assim, o louvor da liberdade, da democracia e dos direitos humanos. Contudo, em meio à euforia, expõe-se também a sujidade que grava o tabuleiro geopolítico internacional, a fluidez da opinião pública e a ineficiência dos sistemas jurídicos internacionais.

Se celebramos um momento de êxtase na construção das relações internacionais, distanciando-nos das guerras e dos algozes, também vivemos um momento de grande alheação, de venda de bandeiras, de simbolismos e políticas públicas vazias, que mais servem à satisfação do imaginário e da angústia contemporânea do que a algo profícuo. A confiança inocente e ingênua nas declarações e nos tribunais penais ocupa o lugar das narrativas históricas e fabulosas do passado como acalanto atual aos espíritos que temem novos nazifascismos.

A morte de Kadafi serve a expor esses mitos da contemporaneidade, pois revela-os como insuficientes, apesar do marketing que deles se faz, e indica quanto a forma de ver e de julgar um tirano não passa, muitas vezes, de um astuto artifício político. Rapidamente, amigos simpáticos viram inimigos cruéis, e inimigos malfeitores se tornam grandes companheiros de fé.

Slobodan Milosevic, quando presidente da Sérvia e da antiga Iugoslávia, nos anos 90, era muito bem recebido por líderes internacionais porque tentava pôr fim à guerra interna de seu país com mãos de ferro. Execrado internacionalmente como "carniceiro dos Bálcãs", morreu em março de 2006, preso em Haia, na Holanda, processado por crimes contra a humanidade, de guerra e genocídio no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Pinochet, porque reprimiu violentamente o comunismo na Guerra Fria, foi, à época, efusivamente apoiado por muitos países. Acusado de crimes contra a humanidade, escapou por pouco da repressão internacional em 1998, depois de uma prisão na Inglaterra que quase acaba na sua extradição para a Espanha. Faleceu em 10 de dezembro de 2006, antes do fim do processo a que respondia no Chile, instaurado apenas por pressão internacional.

O caso de Kadafi é emblemático porque apresenta um líder que mudou de status internacional com ainda maior frequência e agilidade. Nos anos 70 foi um pária diante da bipolaridade da Guerra Fria por apoiar o nasserismo, e nos anos 80 e 90, por colaborar com o terrorismo. Para alguns, fomentou o terror ao negar a extradição de cidadãos líbios acusados da explosão de um avião comercial sobre a Escócia que matou centenas (o "caso Lockerbie"), bem como ao não reconhecer a responsabilidade líbia naquele caso. Para outros, pior: fora ele o próprio financiador do atentado.

Mas há poucos anos o ocidente lhe "estendeu a mão da amizade". Um Kadafi docilizado foi reabilitado de seu antigo estigma ao indenizar os envolvidos naquele atentado e ao se portar internacionalmente segundo os padrões ocidentais. Nem mesmo suas décadas de ditadura foram capazes de afastar a simpatia dos governos ocidentais pelo seu petróleo e pelos seus diligentes esforços em coibir a saída de imigrantes ilegais da África para a Europa. É curioso que sua herança vexaminosa tenha voltado aos discursos políticos ocidentais neste ano, quando da Primavera Árabe: o chefe de Estado há pouco reintegrado retomou sua posição de tirano detestável e sua morte é celebrada em todo o mundo.

Além da volubilidade da opinião pública, ressalta ainda a inabilidade internacional em julgar seus recém-feitos inimigos. Apesar dos reconhecidos crimes que cometeram, esses três acusados terminaram seus dias inocentes, pois, como jamais foram condenados (apesar de réus em processos criminais), não podem ser considerados tecnicamente culpados. Trata-se de uma herança da civilidade, goste-se desse efeito ou não.

Tudo isto serve para que reflitamos e formemos uma opinião mais segura sobre os fatos, para que evitemos a cândida alegria de acreditar que uma ordem jurídica internacional é, por si mesma, garantia da paz mundial. Duvidemos sempre da opinião pública, do engodo vendido e dos discursos políticos, para que, ao menos, nossas opiniões não sejam tão voláteis quanto as políticas exteriores do Ocidente.

Rui Carlo Dissenha, advogado e professor de Direito Penal e Direitos Humanos da Universidade Positivo, é doutorando em Direito Humanos na USP. Guilherme Roman Borges, Juiz Federal Substituto (TRF3), é doutorando em Filosofia do Direito na USP

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