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 | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

Imaginemos dois sujeitos que, voltando do país vizinho após comprarem diversas garrafas de bebida para comercialização no mercado nacional, mas sem pagar o tributo correspondente, são parados pela Receita Federal. Um deles já havia sofrido a mesma fiscalização antes; o outro não. A autoridade fiscal lavra auto de infração, apreende os produtos e constata que eles teriam sonegado, ao todo, R$ 8 mil em impostos. O ilícito fiscal é evidente, mas remanesce a indagação: eles praticaram crime?

Segundo o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça – e estranhamente – um sim, o outro não. Quanto ao sujeito que nunca havia sofrido fiscalização, afirma-se que sua conduta teria sido insignificante. No caso de seu colega, por seu turno, por já ter praticado a mesma conduta antes, entende-se por afastar a insignificância e processá-lo criminalmente pelo fato. A mesma conduta, praticada por diferentes pessoas, é tratadas de modo distinto.

Vale destacar que essas reflexões tratam exclusivamente das pessoas que trazem produtos lícitos ao Brasil, frequentemente chamadas de “muambeiros”. O crime seria o de descaminho (artigo 334 do Código Penal), estando inclusa toda conduta de iludir o pagamento de imposto devido pela entrada, saída ou pelo consumo de mercadoria. Não estamos tratando dos que trazem produtos proibidos, que passam a ser chamados de contrabandistas (artigo 334-A do Código Penal).

Seguindo no caso citado, a diferenciação entre as duas pessoas se dá pela aplicação do chamado “princípio da insignificância”, de aplicação original nos crimes de natureza tributária. Considera-se insignificante, naqueles casos, quando o valor de tributo sonegado for inferior a R$ 10 mil ou R$ 20 mil, a depender do entendimento do julgador sobre o tema. Isso porque, com a vigência da Lei 10.522/2002, foi previsto que todos os débitos abaixo de R$ 10 mil em desfavor da União não seriam executados. Em 2012, houve a edição de duas portarias do Ministério da Fazenda (75/2012 e 130/2012), estendendo esse limite para R$ 20 mil.

Para avaliar se determinado fato é ou não crime, deve-se valorar exclusivamente o modo como ele ocorreu

A conclusão daí decorrente é de que, se esse montante é insignificante para o Estado na esfera tributária, que nem sequer promove a cobrança desses valores por entender irrisórios, quiçá para a esfera criminal, que somente deve ser acionada quando as demais áreas do direito não se mostrarem suficientes para reprimir condutas indesejadas (ultima ratio).

O mesmo entendimento aplicado aos crimes tributários se estende ao delito de descaminho. Em que pese haja sensível diferença quanto à sua finalidade, ainda objetiva evitar que o tributo deixe de ser pago com o ingresso de mercadorias no país. Discute-se, atualmente, se o crime de descaminho visa proteger exclusivamente a arrecadação – o que o tornaria, na prática, crime tributário – ou se há outras finalidades atreladas a essa proibição, como a proteção do mercado interno e da livre concorrência, o que afastaria o entendimento pela insignificância. Em que pese a relevância extrema de tal discussão, ela não é nosso objetivo aqui. Apenas vale destacar que, se houvesse entendimento de que o delito de descaminho tem natureza exclusivamente tributária, isso permitiria a incidência de medidas despenalizadoras extremamente benéficas, tais como a extinção da pena pelo pagamento do tributo (mesmo depois de transitado em julgado o processo). No caso do descaminho, isso poderia ocorrer pela própria pena de perda da mercadoria. Mas isso não ocorre na atualidade, sob o argumento de que o descaminho é crime pluriofensivo.

Como já tínhamos dito, o entendimento quanto ao valor não é pacífico. O Supremo Tribunal Federal entende pelo montante limite de R$ 20 mil, afirmando que as portarias seriam normas mais benéficas ao réu e, portanto, devem ser aplicadas (HC 120.620/RS). Diferentemente, o Superior Tribunal de Justiça considera a quantia de R$ 10 mil, sob a afirmativa de que não há validade formal para elevação do patamar pelo Ministro da Fazenda (REsp 1.393.317/PR). Independentemente da cifra adotada, é fato que, ainda que esses valores estejam dentro do limite “tolerado”, há outro empecilho para o reconhecimento: o modo como a pessoa conduz a sua vida. Se for a primeira vez que está sendo autuada, entende-se que não há crime; mas, se tem autuação anterior, a situação (dizem eles) muda, sendo o agente processado criminalmente pelo fato.

Atualmente tem sido esse o entendimento dos mais altos tribunais. Para ilustrar, há decisão do STJ, em 23 de abril de 2018, afirmando que “o entendimento consolidado desta corte é o de que a prática reiterada do crime de descaminho denota elevado grau de reprovabilidade da conduta, obstando a aplicação do princípio da insignificância” (AgRg no REsp 1619749/PR). Afirma-se com veemência: o entendimento está equivocado.

Leia também: A criminalização do comércio ambulante (artigo de Juliano Enamoto, publicado em 11 de março de 2018)

Leia também: Impostos e contrabando (artigo de Evandro Guimarães, publicado em 15 de outubro de 2015)

Em Direito Penal, estudiosos já afirmaram, de forma unânime, que, para avaliar se determinado fato é ou não crime, deve-se valorar exclusivamente o modo como ele ocorreu, de forma isolada, não podendo haver discriminação acerca da pessoa que o praticou, nem pelo modo como conduz sua vida. Afirma-se haver um Direito Penal sobre o fato praticado, não sobre o autor. Causa espécie, também, que o entendimento esbarre no princípio da presunção de inocência, à medida que considera meras autuações fiscais em desfavor do agente, ao passo que notoriamente há o entendimento de que nem sequer inquéritos policiais ou processos em curso poderiam servir para essa finalidade (Súmula 444 do STJ).

Ou seja, um tema considerado superado pela doutrina encontra entendimento contrário conferido pelo STJ. Daí decorre a relevância da presente discussão.

O que merece pontual crítica é que o ramo do Direito, ao contrário das demais ciências, é o único que utiliza como fonte de conhecimento os entendimentos pretéritos de outros julgadores – a chamada jurisprudência –, mesmo que em largo descompasso com o que entendem os “cientistas”. E isso, muitas vezes, vem acompanhado de questões político-criminais. O fato já foi denunciado por Lênio Streck: primeiro se decide e, só depois, busca-se a fundamentação; atravessam a ponte, chegam ao outro lado e depois voltam para construir a ponte pela qual passaram. São tais contorcionismos jurídicos que, quando bem avaliados, carecem de cientificidade. No caso, o julgador entendeu que o sujeito é merecedor de pena e, por causa disso, tenta fundamentar como entende ser possível, mesmo que a matéria já esteja superada há anos.

Em que pese o STJ afirmar ser entendimento consolidado, não é o que – aí, sim, corretamente – vem aplicando o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região há mais de quatro anos. A desembargadora Cláudia Cristina Cristofani, ao manter a rejeição de denúncia de pessoa que estava sendo processada pelo crime de descaminho, esclareceu que “para fins de incidência do princípio da insignificância deve ser levado em conta somente o valor dos tributos, em tese, sonegados, sem qualquer consideração a respeito dos aspectos subjetivos do agente, tais como habitualidade, reiteração, dentre outros”. Relembrou a desembargadora que, à época da discussão, ainda em 2014, houve voto de desempate do desembargador Luiz Fernando Wowk Penteado no mesmo sentido, afirmando que “o fato não se torna típico ou atípico por uma circunstância referente ao autor, exatamente para fugir da circunstância da aplicação do Direito Penal do autor, e não o Direito Penal do fato”.

Um tema considerado superado pela doutrina encontra entendimento contrário conferido pelo STJ

Mas, atualmente, a questão não é tão simples. Não é com a mesma tranquilidade que pessoa processada por esse crime na cidade de Curitiba vê seu problema solucionado. É certo que o entendimento de que o fato não constitui delito deveria impedir que processo criminal se inicie, mas não é o que ocorre. Foi o caso de pessoa que está sendo processada pelo crime de descaminho por uma das Varas Federais de Curitiba. Com a constatação de que ele trazia produtos da Argentina para o Brasil, deixando de pagar o equivalente a R$ 8.053,80 em tributos, o Ministério Público Federal optou por oferecer denúncia por descaminho, na qual já foi esclarecido, nesse momento, que deveria ser afastando o reconhecimento da insignificância do fato, eis que o acusado tinha anotações de autuações anteriores pela Receita Federal Brasileira. E o juiz, mesmo com a defesa arguindo desde o início do processo que fatos pretéritos e alheios ao ocorrido não têm o condão de transformar fato atípico (não criminoso) em típico (criminoso), optou por manter ativo o processo, deixando de absolver sumariamente o acusado. Felizmente, após a instrução processual, o juiz federal, quando da sentença, reconheceu seu equívoco. Disse ele: “alterei meu entendimento neste ponto, entendo que condutas pretéritas não têm o condão de transformar o agir atual em crime. O histórico do agente não pode influenciar na análise quanto à caracterização do delito, na medida em que se deve prestigiar o direito penal do fato e não o direito penal do autor”.

Atualmente, a diferença entre a pessoa ser absolvida ou condenada por esse crime está nas mãos do procurador regional da República. Em caso de absolvição em primeiro grau, por certo haverá recurso por parte da acusação. Em crimes ocorridos nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, tem-se como segunda instância o TRF4, que tem entendimento consolidado afirmando que tal fato não é criminoso. Ocorre que, ainda que haja a manutenção da absolvição em segundo grau, é possível que haja interposição de Recurso (Especial), remetendo o processo ao STJ – que, atualmente, entende que o fato é crime. Fortuitamente, tem-se visto procuradores do TRF4 anuindo com o entendimento de que a reiteração criminosa não pode ser utilizada para tornar crime fato antes tido como insignificante. Para ilustrar, apresenta-se um, do procurador regional da República Ipojucan Corvello Borba (AC 5010403-47.2017.404.7000), o qual se manifestou pelo desprovimento do recurso da acusação. Segundo ele, “o fato de o acusado ter sido autuado em outras oportunidades por fatos similares, portanto, não pode ser considerado para fins de análise da tipicidade material da conduta”.

Felipe Moraes é advogado especialista em Direito Penal Econômico.
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