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Vivemos numa sociedade bizarra, onde alguém diz que se identifica com um gato e os outros, ao invés de indicarem ajuda profissional, perguntam-lhe se bebe água parada na tigela ou se prefere as cascatinhas.
Vivemos numa sociedade bizarra, onde alguém diz que se identifica com um gato e os outros, ao invés de indicarem ajuda profissional, perguntam-lhe se bebe água parada na tigela ou se prefere as cascatinhas.| Foto: Unsplash

Circula entre corredores de longa distância uma máxima que diz: “a dor é inevitável, o sofrimento, opcional”. Os mais cultivados costumam atribuí-la a Buda; venha de onde vier, é um postulado extremamente realista, lembrado geralmente quando o corpo está perto do seu limite. Os que recorrem a esse mantra, refletida ou irrefletidamente, compartilham de umas tantas crenças: a realidade existe e impõe limites ao ser humano; tais limites não podem ser superados sem uma estratégia; há um enorme contentamento pessoal quando se encontra a estratégia adequada – o que nem sempre ocorre. A base de tudo consiste em supor que há um universo de coisas e situações lá fora, independentes de mim ou das minhas representações, com os quais, incontornavelmente, tenho de lidar. Tudo muito trivial, muito simples; e de fato é, mas anda meio esquecido ultimamente.

Vivemos – ao menos aqui, nas bandas ocidentais do planeta – numa sociedade bizarra, onde um indivíduo diz que se identifica com um gato e os outros indivíduos ao redor, ao invés de lhe indicarem uma ajuda profissional, perguntam-lhe se bebe água parada na tigela ou se prefere as cascatinhas, com água em movimento. Os mais íntimos e zelosos ainda são capazes de ponderar: vá com calma, evite, ao menos por enquanto, comer pássaros crus ou andar em muros muito altos, sobretudo à noite. Parece piada, e poderia ser, mas não é; ao contrário, o “identifico-me com...” é só uma singela mostra da tal “realidade socialmente construída” que, com uma insistência irritante, uns tantos universitários, jornalistas, artistas, celebridades e, mais recentemente, juízes tentam nos impor.

Se não retomarmos urgentemente o controle da nossa atenção e o gosto por interagir com o mundo lá fora, transformar-nos-emos num bando de gatos solitários.

Por que caminhos tortos viemos parar neste onirismo coletivo? Impossível saber ao certo, mas há quem tenha bons diagnósticos e receitas de cura. Um deles é o singular pensador e mecânico de motocicletas Matthew Crawford, autor da trilogia Shop class as soulcraft (2009), The world beyond your head (2015) e Why we drive (2020) – todos sem tradução para o português. Crawford é, de fato, proprietário de uma oficina mecânica especializada na reconstrução e reparo de motores de motocicletas, e seu pensamento, para espanto dos mais ortodoxos, toma como objetos centrais de análise os veículos automotores, os hábitos de condução e o trabalho dos artesãos, sobretudo dos mecânicos de motores. É a partir deste mundo sólido e palpável que o filósofo norte-americano esquadrinha os múltiplos processos pelos quais, ao longo das últimas décadas, fomos gradativamente levados a perde contato com a realidade, ao ponto de supô-la totalmente moldável à vontade humana.

O Mundo Além de sua Cabeça, livro de 2015, constitui uma excelente porta de entrada para o pensamento de Crawford. Aí, o filósofo-mecânico ou mecânico-filósofo parte da seguinte premissa: as pessoas estão perdendo a capacidade de dar atenção às coisas do mundo, inclusive às outras pessoas; elas estão literalmente perdendo contato com a realidade. Para piorar o que já não é bom, encontramo-nos rodeados por tecnologias criadas para estimular e promover tal perda: por um lado, elas executam por nós aquelas tarefas enfadonhas do dia a dia (dirigir, cozinhar, limpar a casa, cortar a grama do jardim, abrir portas e acender luzes, fazer compras etc.), tarefas que, bem ou mal, nos conectavam com a realidade; por outro, parte dessas tecnologias captam aquela atenção que não dispensamos mais às coisas, pessoas e situações para uma outra realidade, a realidade das telas, das redes sociais, das IAs, enfim, para aquela realidade que suscita e promete atender com diminuto esforço os desejos que ardentemente buscamos satisfazer.

Crawford, bem entendido, não é um ecoterrorista, um ermitão de meia-idade, alérgico à tecnologia e ao progresso, gritando “realidade ou nada”. Longe disso. Incontáveis são os benefícios, reconhece o mecânico, que a tecnologia trouxe para as sociedades contemporâneas; mas tudo tem seu preço, e nem sempre é barato. Uma sociedade saturada de tecnologias da distração e demasiado vigilante dos desejos e comportamentos de seus membros, melhor, sempre pronta a gerir os comportamentos e a produzir os desejos de seus membros, não parece ser um lugar muito agradável de se viver. Para mais, parte substantiva da inteligência desenvolvida pelos seres humanos, lembra Crawford, é devedora da atenção que dedicamos ao mundo circundante e da constante tentativa – nem sempre exitosa, mas sempre educativa – de superar os muitos limites e obstáculos que a realidade coloca às nossas ações. Que lições e aprendizados conseguiremos extrair dessa realidade mediada e controlada, sem asperezas e imprevistos, que nos oferecem as tecnologias da distração?

Ao que tudo indica, se não retomarmos urgentemente o controle da nossa atenção e o gosto por interagir com o mundo lá fora, inclusive com os outros humanos de carne e osso, transformar-nos-emos num bando de gatos solitários, sedentários, desatentos e burros, seres que os gatos reais, aqueles que andam em muros estreitos, caem sempre em pé e detestam beber água parada, certamente julgarão de triste figura.

Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.

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