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| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Participava, há alguns dias, de sessão ordinária na Câmara de Vereadores de São José dos Pinhais. Após a abertura dos trabalhos pela presidência da casa, subiu à tribuna para falar, por 15 minutos, um cidadão representante de uma coletividade popular. Tratava-se de grupo de compradores de unidades em condomínio residencial localizado no bairro Afonso Pena, na mesma cidade. O cidadão representante do grupo afirmava que a construtora estava em dívida com os compradores, dado o empreendimento não ter sido concluído dentro do prazo e a obra estar embargada por irregularidades desde 2015. O objetivo era sensibilizar vereadores no sentido de tomarem conhecimento quanto às diversas irregularidades atribuídas à construtora, para que, sendo o caso, adotassem providências. Referido momento da sessão chama-se “Tribuna Popular”.

Eventuais providências a serem adotadas pela Câmara, a partir da denúncia do grupo de compradores, dependerão, é claro, dos vereadores, no exercício de sua atividade legislativa. Note-se que a atividade legislativa no campo da vereança – e também nos demais níveis da federação – não se resume apenas à elaboração de leis. Cite-se, como exemplo, a figura das indicações ao Poder Executivo. Trata-se de mensagem enviada ao Poder Executivo no sentido de provocá-lo a adotar, dentro de suas competências, medidas que solucionem as demandas levadas aos vereadores pela população (como, por exemplo, tapar buracos ou construir lombadas de rua em bairros mais afastados e menos visitados).

A Constituição de 1988 deu posição de destaque aos municípios. Existentes no sistema federativo brasileiro desde a primeira Constituição republicana (a segunda Constituição da história do Brasil), promulgada em 1891, os municípios sempre tiveram uma posição, pode-se dizer, secundária na organização político-administrativa brasileira. Hely Lopes Meirelles explica que até pelo menos a Constituição brasileira de 1946 a dificuldade de controle sobre as comunas, porque distantes do poder político central, levou a que uma efetiva autonomia dessas entidades fosse vista com certa dose de desconfiança, resultando em restrições quanto ao seu campo de competências. Posteriormente, com o passar dos anos as unidades federativas municipais foram adquirindo maior autonomia, na prática e também juridicamente, culminando com o desenho implementado pela Constituição de 1988. Esta Carta posiciona os municípios de modo expresso, e inaugural, dentre as entidades políticas que integram a União, a eles não atribuindo propriamente bens, é verdade, mas sim competências constitucionais de natureza legislativa e administrativa. Assim é que os municípios, hoje, podem dispor sobre assuntos de seu próprio interesse em caráter exclusivo, e também em caráter concorrencial, junto com os demais entes da federação.

Podemos olhar de perto os problemas da cidade e relatá-los a nossos representantes eleitos

Os municípios são o que temos de mais próximo enquanto poder público (leia-se instituições) focado na satisfação de necessidades humanas fundamentais. Essas necessidades humanas podem ser levadas aos representantes eleitos diretamente pela população, seja encontrando-se diretamente com os vereadores, seja manifestando-se em plenário da respectiva casa legislativa, como é o caso do exemplo acima citado, da Tribuna Popular. Olhar de perto os problemas da cidade, relatá-los a nossos representantes eleitos, oferecer novas ideias, esse é um dos papéis que podemos exercer para construirmos uma vivência melhor. A possibilidade da autonomia municipal, bem como o seu exercício, são as ferramentas trazidas pela Constituição de 88 para o atendimento dos objetivos de uma comunidade política que desse modo procure se reconhecer.

Um olhar sobre a atividade legislativa de nossos vereadores pode ser um bom começo para verificar o que está sendo implementado, na prática, a partir do universo de possibilidades que a Constituição abre aos municípios em matéria de políticas públicas destinadas à satisfação de necessidades humanas fundamentais. Veja-se um exemplo.

A partir de uma consulta ao portal da Câmara dos Vereadores de Curitiba, observa-se a pauta legislativa de algumas comissões. No mês de agosto de 2017, a Comissão de Educação, Cultura e Turismo da Câmara reuniu-se duas vezes, uma no dia 9 e outra no dia 23. Na reunião do dia 23, das 27 proposições apresentadas, 23 consistiam em indicações de pessoas para títulos honoríficos, ou concessões de títulos propriamente ditos. As outras quatro proposições versavam sobre apresentação de artistas de rua; concurso de cartas na rede municipal de ensino; instituição de semana de prevenção e combate à automutilação; e denominação de logradouro público. Já na reunião do dia 9, das 22 proposições apresentadas, 17 tratavam, igualmente, de indicações de pessoas para títulos honoríficos ou concessões de títulos propriamente ditos. As outras cinco proposições versavam sobre apresentação de artistas de rua; concurso de cartas na rede municipal de ensino; reconhecimento de Curitiba como a capital da cerveja artesanal; inclusão, no calendário oficial da cidade, da semana da cerveja artesanal; e denominação de logradouro público. A pauta de 6 de junho de 2018, quase um ano depois, não é muito diferente.

Leia também: Os riscos para a democracia em nível local (editorial de 6 de junho de 2018)

Nossas convicções: Fortalecimento do modelo federativo

Considerando o teor dessa pauta, a pergunta que surge é: como podemos contribuir para que a Comissão de Educação, Cultura e Turismo da Câmara possa discutir proposições legislativas que, por exemplo, na área de educação, cuidem de remuneração de professores ou recursos para aquisição de materiais didáticos, pelas instituições de ensino; na área de cultura, instituam incentivos de acesso à cultura que proporcionem, no espaço público, a expressão de novos artistas e o acesso amplo a novidades; e, na área do turismo, possam fomentar o comércio local ou remodelar estruturas de modo a atrair novos turistas, do Brasil e de diferentes países? Enfim, proposições que melhorem a cidade e a qualidade de vida das pessoas.

Não se está aqui a diminuir a importância dos temas tratados na pauta da Comissão de Educação, Cultura e Turismo da Câmara, posto que, é verdade, traduzem reconhecimento e/ou podem trazer benefícios importantes ao município. Está-se, sim, por outro lado, a pontuar uma crítica e cobrar que assuntos de relevância e urgência possam igualmente ocupar espaço importante – se não majoritário – nas respectivas pautas legislativas.

O país está caminhando a passos lentos rumo ao que realmente pode ser. A Constituição de 1988 abre espaço para que sejamos melhores. Basta reconhecer que somos partícipes desta Constituição.

Ana Lucia Pretto Pereira, doutora em Direito Constitucional e pós-doutora em Processo Constitucional, é professora no Centro Universitário Autônomo do Brasil (UniBrasil).
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