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Imaginar-se parte de uma nação tem muita relação com as escutas compartilhadas. De certa forma, somos a música que ouvimos

É muito difícil determinar que fatores permitem um povo ou uma nação se identificar como tal. Fatores linguísticos, étnicos, culturais, religiosos, históricos – todos eles são incapazes de explicar totalmente a ideia de nação. Nações são "comunidades imaginadas", para usar um conceito forjado por Benedict Anderson, apesar de ninguém ser capaz de formular regras gerais sobre como comunidades nacionais se identificam ou imaginam como tais.

Na Europa a formação das nações modernas se deu principalmente no século 19, e em quase todos os casos conhecidos, houve um papel importante da cultura como elemento de identidade – em especial da literatura, ou do mercado editorial, que inclui romances, poesias, jornais e revistas.

A música também teve um papel muito importante nos processos de constituição das identidades nacionais, principalmente se pensarmos em alguns casos específicos. Por exemplo, a Alemanha, cuja musicologia construiu tal hegemonia no século 19 que a música alemã virou sinônimo de música clássica ou de concerto. Com efeito retroativo, à medida em que J. S. Bach – um obscuro mestre de capela do interior de uma região atrasada da Europa que não teve nenhuma partitura publicada em vida, tornou-se, após mais de 70 anos de sua morte, um nome mais ou menos universalmente aceito como o grande gênio da arte musical.

O processo que levou a esse reconhecimento passou pela noção de que valores da música germânica eram universais: a noção de música como construção racional em que o fator mais importante são as notas musicais; de que compor música é elaborar temas que serão desenvolvidos conforme regras harmônicas universais, que serão distribuídos equilibradamente em formas seccionadas da qual o maior exemplo são os primeiros movimentos de sonatas e sinfonias.

Poderíamos pensar na preponderância que teve a ópera oitocentista para o estabelecimento de uma identidade política na Itália, país tradicionalmente composto de cidades independentes e regiões pertencentes a domínios estrangeiros e que só se tornou uma nação por volta de 1870. Não por coincidência à mesma época em que a Alemanha. Essas nações tiveram uma hipertrofia da importância da música como elemento de identidade, que serviu de contrapeso à sua tardia organização política em relação a nações mais antigas como Portugal, Espanha, Inglaterra ou França. Na Itália o compositor de óperas Giusepe Verdi chegou a ser senador, e seu sobrenome virou anagrama político: Vitorio Emanuele, Rei Da Itália = VERDI.

No século 20 ocorreu uma mudança muito significativa para o modo como a música era produzida e difundida: a invenção do fonograma, que possibilitou uma nova significação para a música popular, grosso modo aquela música feita sem registro escrito, e que agora não se perdia mais em uma imaterialidade ágrafa. Isso permitiu que países como Brasil e Estados Unidos estabelecessem tradições autóctones muito vivas, que verdadeiramente criaram uma identidade nacional a partir do mercado de entretenimento musical (rádio, disco e cinema) nos anos 1930 – ao mesmo tempo em que seus intelectuais de elite lamentavam o fato de não conseguirem criar uma tradição clássica nos moldes europeus.

Somente a partir da década de 1960 é que jornalistas e intelectuais de formação mais liberal passaram a reconhecer o jazz e o samba como fortes elementos de identidade, como contribuições originais de seus povos ao patrimônio da humanidade. O que só foi possível após o triunfo de certas ideias de origem marxista fazerem as avaliações culturais superarem os antigos preconceitos de classe que estabeleciam claras diferenças hierárquicas entre cultura de elite (letrada) e cultura de massas (iletrada).

De tal modo que, hoje sabemos, imaginar-se parte de uma nação tem muita relação com as escutas compartilhadas. De certa forma, somos a música que ouvimos.

André Egg, doutor em História Social pela USP, é professor da FAP.

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