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Quando Ally Babineaux tinha 22 anos, antes de fazer o primeiro de dois transplantes cardíacos, e depois de quase ter morrido por causa de um vírus agressivo que lhe atacou o coração, uma mulher se aproximou dela em um estacionamento. Apesar de muito doente naquele dia de 2010, ainda era um exemplo da beleza clássica do Texas, com o cabelo longo loiro, olhos azuis brilhantes e uma vaga lembrança do corpo musculoso e elegante que os anos de balé tinham ajudado a formar. Ficara um mês no hospital, de onde acabara de sair – apesar da recuperação não estar garantida –, e tentava fazer umas compras rápidas antes que a pouca energia que tinha se esvaísse.

Estacionou o carro perto da entrada da loja e colocou o comprovante no retrovisor. Quando estava saindo, a mulher começou a gritar com ela por ter ocupado uma vaga para deficientes.

Ter pavio curto pode contribuir para as doenças cardíacas, mas também pode ser um sinal de autopreservação. Parada no pátio, sob o sol, Ally levantou a blusa para mostrar o tubo que saía da barriga, conectado a uma pequena bateria que levava na bolsa ao ombro – a mesma que alimentava a bomba minúscula que fazia bater o lado esquerdo de seu coração e a mantinha viva. “Essa deficiência serve para você?”, questionou Ally.

Lembrei-me de Ally muitas vezes, escrevendo sobre doenças cardíacas nos últimos anos. E me pergunto por que, apesar de ainda matar tanta gente nos Estados Unidos – foram responsáveis por 610 mil mortes, segundo a Associação Norte-Americana do Coração –, parecem causar menos medo que o câncer, que deve ceifar 609 mil vidas em 2018, ou mesmo a epidemia dos opioides, que matou 72 mil pessoas em 2017.

Ter pavio curto pode contribuir para as doenças cardíacas, mas também pode ser um sinal de autopreservação

Um dos grandes terrores da vida da mulher é o câncer de mama, que mata uma em cada 30 por ano, mas uma em quatro perde a vida para os problemas cardíacos. Como repetem constantemente as informações de utilidade pública das ONGs, mais mulheres morrem do coração do que de todos os cânceres juntos. Dois estudos concluídos recentemente mostraram um aumento assustador no número das que sofrem infartos e revelam insuficiência cardíaca antes, durante e imediatamente após o parto.

E embora o número de óbitos resultantes de enfartes esteja caindo, o de pessoas que vivem com insuficiência cardíaca – aquelas que têm a impressão de estar sufocando dia após dia porque o coração não consegue bombear sangue suficiente para gerar uma existência saudável e confortável – não para de subir. No período 2009-2013, eram 5,7 milhões; de 2011 a 2014, 6,5 milhões. Considerando que a fatia de idosos da população só faz crescer, os males cardiovasculares, em todas as suas formas, estarão presentes no dia a dia por um longo tempo.

Mesmo assim, persistem a displicência e a despreocupação. Isso se deve, em parte, aos muitos avanços feitos desde os anos 60, quando a relação causal entre o tabagismo e as doenças cardíacas se tornou convincente para todos, menos para os fabricantes de cigarros. Também nunca foi segredo que se manter saudável ajuda: tudo o que a pessoa tem de fazer para supostamente evitar um infarto é parar de fumar, dormir bem, se exercitar, controlar o estresse e evitar junk food.

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Hoje temos remédios mais eficazes, como os que reduzem o colesterol ruim, e recursos que vão desde marcapassos e desfibriladores até microcirurgias intrauterinas para reparos no músculo cardíaco do feto. E como esquecer os transplantes que, nos anos 60, eram revolucionários, mas hoje não passam de procedimento quase rotineiro (menos quando é você que tem de passar por ele)? Corações mecânicos e versões desenvolvidas a partir de nossas próprias células-tronco não parecem distantes.

O tratamento das doenças cardíacas, ao contrário do tratamento do câncer, muitas vezes parece invisível. Talvez, nos estágios finais, você se veja atrelado a um tanque de oxigênio, mas ninguém fica careca por causa de uma cirurgia de peito aberto, nem sofre uma perda desfiguradora que chega a ameaçar sua essência sexual. “Você ouve a palavra ‘quimio’ e vê o que ela causa nas pessoas. Eu nunca tive aparência doente até ficar mal de verdade. Não dá para dizer quem sofre do coração, a menos que se saiba”, me contou Ally.

Na verdade, as doenças cardíacas se tornaram vítimas do próprio sucesso. Sim, 90% de todos os infartos podem ser prevenidos, mas, ainda assim, 735 mil norte-americanos ainda são vítimas dele. E embora seja fácil convencer uma mulher branca com curso superior a começar a fazer aula de spin para se salvar, há muito menos opções para os negros pobres nos EUA – que, para começar, raramente têm acesso a alimentos frescos e de boa qualidade.

O tratamento das doenças cardíacas, ao contrário do tratamento do câncer, muitas vezes parece invisível

E culpar as vítimas não ajuda muito, principalmente quando muitas não têm nem como saber que correm riscos: o recém-nascido com um defeito congênito, o astro do futebol do colégio que tem um colapso em campo, o corredor de meia-idade que cai morto no exercício matinal, o número imenso de mulheres cujo problema não é diagnosticado ou é, de forma errônea, por médicos que ainda não reconhecem que os sintomas dos problemas cardíacos variam de acordo com o gênero... essas pessoas não são responsáveis pelo mal que as acomete, que pode ser silencioso e letal como qualquer câncer.

Na pior das hipóteses há sempre um transplante como último recurso, certo? Não necessariamente. Os doadores são escassos. Em uma daquelas coincidências obscuras da saúde pública, o uso quase universal do cinto de segurança causou uma queda drástica nas mortes no trânsito – e, por sua vez, nos corações para quem deles precisa. O número disponível para transplante continua parado em 2,5 mil/ano, enquanto o número de pacientes que aguardam pelo órgão já está em pelo menos 3 mil. O tempo de espera, que pode ser fatal, está aumentando.

Ally entrou para a lista de transplantes duas vezes depois daquele dia no estacionamento. Hoje está casada, vivendo com um segundo coração e uma cicatriz imensa, parte da qual pode ser vista toda vez que usa uma roupa mais aberta. Passou por outras cirurgias relacionadas ao coração, foi hospitalizada várias vezes e tem de brigar quase todos os dias com as seguradoras. Mas deu e dá conta de tudo, geralmente de bom humor – menos quando sofre abuso verbal de estranhos que nem imaginam a sorte que têm.

Mimi Swartz é diretora executiva da Texas Monthly e é autora de “Ticker, the Quest to Build an Artificial Heart”.
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