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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

Juízes interpretam e aplicam a Constituição e as leis, não fazem justiça.” (Eros Grau)

Marcou minha carreira de magistrado do trabalho a discussão sobre a incidência da multa do artigo 652, “d”, da CLT nos processos trabalhistas. Em meados da década de 1990, alguns colegas magistrados, inconformados com a inadimplência dos empregadores nas obrigações trabalhistas e as poucas consequências dessa mora contumaz, apoiados na regra do artigo 652, letra “d”, da CLT, agravavam as condenações nos processos trabalhistas acrescendo-as de uma cominação que chamavam de “multa”, em valores arbitrados por equidade, mas que normalmente eram de 40% sobre o valor da condenação.

Segundo estipulavam as decisões nesse sentido, deveria ser feito o cálculo do valor total da condenação com o acréscimo de uma multa de 40%, e do resultado se procederia a atualização monetária e com a incidência de juros de mora. Exemplo: na condenação em que a soma dos haveres resultava R$ 10 mil, acresciam-se R$ 4 mil (40%), totalizando R$ 14 mil, que seriam majorados por atualização monetária e juros de mora de 1% ao mês.

Obviamente isto era apavorante para os devedores trabalhistas, e um ótimo meio persuasório para forçar pagamentos ou acordos. “Empresa, pague logo ou, no futuro, vai pagar quase metade a mais!” era expressão comum nas salas de audiência das Juntas de Conciliação e Julgamento. Tal entendimento foi largamente difundido, chegando a criar jurisprudência na época, mas também gerou acalorados debates doutrinários e nos tribunais, com discussões que chegaram até à invocação do Dalai Lama e outros “Dalais” da época.

Porém, quando revista, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em março de 1999, tal tese foi afastada. A corte argumentou que o artigo 652, “d”, “Não constitui, assim, norma jurídica em branco para o órgão judicante arbitrar, a seu talante, de ofício, percentual aleatório a título de ‘multa’, incidente sobre o valor líquido do crédito em execução, a pretexto de não satisfação em época própria. A lei, afora os casos estritos de previsão expressa do percentual da multa, somente impõe ao devedor juros moratórios e atualização monetária”.

Decorrido algum tempo, mais especificamente em 2005, numa das várias reformas do Código de Processo Civil (CPC) de 1973, acresceu-se a letra “J” ao artigo 475, prevendo multa de 10% para o executado que não satisfizesse espontaneamente a obrigação de pagar crédito de valor líquido. Disposição essa que foi repetida no CPC de 2015, e que levou muitos magistrados – inclusive o autor deste artigo – a concluírem que tal regra valeria também para as execuções trabalhistas.

Mais uma vez, após diversos anos de intensos debates, em 2017 o TST pôs fim à discussão pela via de um Incidente de Resolução de Recursos de Revista Repetitivos (IRR), fixando a tese de que “a multa coercitiva do artigo 523, § 1.º, do CPC de 2015 (artigo 475-J do CPC de 1973) não é compatível com as normas vigentes da CLT por que se rege o processo do trabalho, ao qual não se aplica”. Os fundamentos de tais decisões são extensos, mas podem ser resumidos na conclusão de que é incabível a aplicação subsidiária de outros sistemas quando são expressas e suficientes as regras da Consolidação das Leis do Trabalho para dirimir a questão da fixação dos créditos judiciais trabalhistas.

Pois bem: recentemente, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nas ADCs 58 e 59 e ADIs 5.867 e 6.021, que definiu o Índice Nacional de Preço ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), na fase pré-judicial, e, a partir da citação, a taxa Selic, como índice de correção monetária aplicável aos créditos na Justiça do Trabalho, causou grande perplexidade e diversificadas reações na doutrina e jurisprudência.

Particularmente e com todo o respeito ao STF, penso que tal conclusão é de mui questionável justiça e contraria a própria jurisprudência obrigatória do pretório excelso. No entanto, aprendi na prática que decisões como essa devem ser cumpridas, e não questionadas. Mas alguns continuam questionando, e chamou-me atenção a reação expressada em julgados que vêm dando ênfase à tese da aplicação ex officio da “indenização suplementar” prevista no parágrafo único do artigo 404 do Código Civil Brasileiro (CCB), sob o argumento da prova de que os juros de mora da taxa Selic não cobrem os prejuízos do credor judicial trabalhista.

Sem questionar a firmeza da fundamentação e nobreza de propósitos da decisão, e também passando por cima do “efeito surpresa” da imposição de ofício das decisões que acrescem esta “indenização suplementar”, desde logo lanço a indagação: mais uma vez a Justiça do Trabalho impondo indenização de ofício? Claro que a resposta vai envolver a análise da distinção da natureza jurídica da indenização do artigo 404 do CCB, em relação à multa do artigo 652, “d”, da CLT, e do artigo 523, § 1.º, do CPC, porém, deixando de lado os aspectos técnicos e tentando usar a ótica dos milhões de leigos jurisdicionados da Justiça do Trabalho, os efeitos de todas estas sanções judiciais impostas de ofício não são exatamente os mesmos?

Tais questionamentos poderão levar às acusações de que o raciocínio ora expendido é simplista, excessivamente pragmático, utilitarista, e até injusto, mas sinto-me com liberdade e até obrigado a externar a minha opinião, fruto dos meus mais de 35 anos de militância na Justiça do Trabalho. Parece-me que a iniciativa de criar modos de majorar as condenações com manobras interpretativas jurídicas a partir do uso de analogia ou procurando a finalidade da norma, e invocando princípios gerais como o da “reparação integral”, métodos hermenêuticos calcados em interpretações sistemáticas e teleológicas, e outros artifícios técnicos, acaba por produzir o mais indesejável dos efeitos: a insegurança jurídica.

Sim, porque com decisões surpreendentes o Judiciário deixa de cumprir o seu papel de interpretar e aplicar as regras, e começa a criá-las, pondo em xeque o próprio sistema de divisão de poderes e distanciando-se até do ideal de produzir justiça. Como obter igualdade de tratamento se os cidadãos são constantemente atormentados por teses jurídicas que usam fórmulas velhas de comprovada ineficácia para solução de problemas crônicos? Se concluímos que o modelo do juiz “boca da lei” está superado, também estamos percebendo os maléficos efeitos de um Judiciário renitentemente ativista. Há de se achar um ponto de equilíbrio entre estes dois magistrados.

Sinceramente, não sei como corrigir problemas como a morosidade e a ineficácia das decisões judiciais, mas, a meu ver, a solução destas e de outras questões passa longe da criação de penalidades ou agravamentos ao talante dos juízes e suas interpretações peculiares da lei. Por isso, termino estas ponderações tradutoras de meu incômodo concernente às situações em análise: nova indenização nas causas trabalhistas, de novo?

Cassio Colombo Filho é advogado, desembargador do Trabalho aposentado, mestre em Direito e professor universitário.

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