O beijo que entrou para a história

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Na noite de 31 de janeiro de 2014 três homens entraram para a história da tevê brasileira. O fato pode ser colocado de inúmeras maneiras, mas a verdade é que o que Mateus Solano, Thiago Fragoso e Walcyr Carrasco fizeram gerou um marco na teledramaturgia do país. Mesmo sem ter sido o primeiro beijo entre dois homens na tevê aberta no Brasil.

O beijo trocado por Félix e Niko no último capítulo de Amor à Vida exibido na última sexta-feira foi comemorado e tido por alguns como o primeiro beijo gay da tevê aberta brasileira. Não foi. Em 2008, os personagens de Guilherme Weber e Bruno Garcia protagonizaram o que foi o primeiro beijo gay da Rede Globo na minissérie Queridos Amigos, sem nenhum teor romântico, mas ainda assim trocado por dois homens. Sem falar no beijo trocado por pelas personagens de Luciana Vendramini e Giselle Tigre na novela Amor e Revolução exibida pelo SBT em 2011. Então onde está a diferença? Por que comemorar o beijo de Félix e Niko?

A trama de Amor à Vida escrita por Walcyr Carrasco (sua primeira novela no horário nobre) falava de família. Esse era o fio condutor da história que, convenhamos, tinha deixado de ser interessante há alguns meses. Acontece que desde o início o vilão da novela foi quem caiu nas graças do povo. Nas redes sociais era comum ver as montagens com fotos do vilão de Mateus Solano e os comentários afiados do personagem na hashtag #FelixBichaMá. Félix caiu no gosto de todos com seu jeito escrachado. Ninguém se importava se ele era mau ou bom, ético ou não, gay ou não. Assumido desde o começo, ainda que vivendo um casamento de aparências, o vilão acabou virando a figura central da trama. De outro lado estavam Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcello Antony), o casal gay já estabelecido, com uma relação duradoura e disposto a ter um filho. Que Félix e Niko fossem terminar a novela juntos ninguém poderia prever, pois final de vilão de novela é sempre a morte ou a loucura. Mas Walcyr ouviu o público. E, afinal, sua novela era sobre amor e família. Então qual redenção melhor do vilão senão pelo amor e pela vontade de constituir uma família?

Ao exibir cenas cotidianas de um casal gay, como levar os filhos para a escola ou cuidar do pai doente, a Rede Globo coloca a relação homossexual como ela realmente é: igual a qualquer outra. Ao redimir seu vilão com o amor, Walcyr Carrasco provou que gays são iguais a qualquer um. Ao colocar um beijo entre dois homens que se amam num dos programas mais assistidos da tevê brasileira, a Rede Globo, depois de muito relutar, segue a tendência de produtos internacionais. A novela, principalmente a das 21horas, é como se fosse um membro da família do povo brasileiro. Faz companhia para muita gente, dita moda, gera vocabulário e é o maior produto cultural do país. Querendo ou não, é o meio pelo qual boa parte da população tem contato com diferentes culturas e formas de ver o mundo.

É de extrema importância, portanto, que o maior canal de tevê do Brasil tenha tido essa coragem. Não era sua obrigação, como muitos alardeavam há anos nos prometidos e cortados beijos em outras novelas. O mérito está em colocar este beijo dentro da sala das pessoas. Em mostrar que uma relação homossexual pode, sim, ser baseada em amor verdadeiro e recíproco. Baseada em respeito e que ela é igual a uma relação heterossexual. Muita gente torceu o nariz, xingou, achou desnecessário. É justamente por causa dessas pessoas que o beijo foi necessário. Se o papel da novela – ainda que indiretamente – é ensinar, que ensine a tolerância e o respeito. Que ensine que o amor pode ser a força motora da redenção. Que ensine que um amor verdadeiro será sempre válido, seja entre dois homens, duas mulheres ou um homem ou uma mulher.

Flávio St Jayme, jornalista e empresário, é sócio-proprietário da agência Clockwork Comunicação e tem formação em Pedagogia e História da Arte.

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