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O caso “Tucho”: os problemas com o homem que o papa escolheu como guardião da fé
| Foto: Facebook de Victor Manuel Fernandez

Touche pas à mon pote

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Na última semana, a Igreja Católica foi movimentada pela notícia da nomeação que o papa Francisco fez de seu compatriota, pupilo, amigo e conselheiro teológico, dom Víctor Manuel Fernández, até então arcebispo de La Plata, como prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o antigo Tribunal do Santo Ofício.

A escolha de “Tucho”, como é conhecido o arcebispo, suscitou várias reações negativas no mundo católico, incluindo a manifestação do Cardeal Gerhard Müller, prefeito emérito do dicastério, então chamado de Congregação para a Doutrina da Fé (dirigiu-a sob Bento XVI e também sob Francisco): segundo o cardeal, o novo prefeito tem um pensamento “herético”, ao sustentar que “qualquer diocese do mundo poderia se converter em sede do papado”.

Dom Víctor Manuel Fernández, que escrevera, quando jovem pároco, um livro chamado Saname com tu boca: El arte de besar – como explicou o autor, não era uma obra “sobre sua experiência”, mas uma “catequese para seus jovens paroquianos, com o objetivo de ajudá-los a evitar as relações pré-matrimoniais” –, chegou a ter sua candidatura a reitor da Universidad Católica Argentina (UCA) bloqueada pela Congregação da Educação Católica (órgão da Cúria romana), basicamente por ter escrito, em 2004, dois artigos favoráveis à “ética da situação”: segundo esta corrente, as circunstâncias de um ato pecaminoso poderiam não somente eximir de culpa um pecado grave objetivo, mas justificá-lo. 

Tais artigos representavam uma negação do ensinamento no magistério autorizado da encíclica sobre moral Veritatis Splendor (1994), de João Paulo II. E o singular é que Tucho é considerado o ghostwriter do escrito mais polêmico de Francisco, a exortação apostólica Amoris Laetitia (AL, 2016), que traz alguns plágios dos artigos que foram a causa da rejeição do teólogo como reitor da UCA. As ideias do recém-nomeado prefeito presentes em AL ofereceram precisamente a justificativa teológico-moral para a nova pastoral com os casais divorciados e novamente casados, segundo a qual eles poderiam, a depender do “discernimento das circunstâncias”, receber a comunhão eucarística, pois “estariam em pecado objetivo, mas subjetivamente em graça”. 

Ora, esta nova pastoral, ao ser contrária à prática tradicional da Igreja Católica – que havia sido reafirmada por João Paulo II, na exortação apostólica Familiaris Consortio (1981), e também o foi em outros documentos disciplinares recentes, inclusive pelo cardeal Müller sob Francisco! –, foi alvo dos dubia (“dúvidas”) de quatro cardeais, que questionaram a respeito dos erros latentes. A possibilidade da nova prática favorece um entendimento errado da doutrina católica acerca da indissolubilidade do matrimônio, bem como da existência de atos morais intrinsecamente maus ou do poder da Graça para a conversão.

A possibilidade da nova prática favorece um entendimento errado da doutrina católica acerca da indissolubilidade do matrimônio

Em recente homilia na catedral de La Plata (no dia 05/03/23), dom Víctor Manuel Fernández afirma que “a Igreja, durante séculos, foi numa direção contrária ao reconhecimento da dignidade de todos”, pelo fato de “desenvolver uma filosofia moral em que discernia entre quem poderia comungar ou não, quem poderia ser perdoado ou não”... Ora, tais distinções dizem respeito simplesmente à presença ou ausência do arrependimento e confissão dos pecados, e não a qualquer classe de pecado “não perdoável”; no fundo, além da grosseira acusação feita à Igreja, aqui ressoa uma perspectiva moral relativista (eco da ética situacional).

Numa entrevista após sua nomeação, dada ao site Infovaticana (no último dia 05), dom Manuel Fernández curiosamente defendeu a moral objetiva, disse que “o que está mal está mal”, a propósito dos métodos inquisitoriais passados, referindo-se à tortura. É necessário concordar com ele (quanto ao princípio e ao exemplo), mas, na mesma entrevista, perguntado sobre o responsum da Congregação para a Doutrina da Fé, de 2021, que proibiu terminantemente as “bênçãos de uniões de pessoas do mesmo sexo”, ele se sai dizendo que “matrimônio em sentido estrito (sic) é a união entre varão e mulher que pode gerar vida”, e que “usar o nome para expressar outra coisa não é bom ou correto”; mas segue afirmando que “uma bênção que não provoque essa confusão poderia ser analisada e confirmada”... Como se o problema fosse de ordem terminológica! 

Na mesma entrevista, Tucho, perguntado sobre a questão da “evolução da doutrina”, responde que “a doutrina não muda, porque é o mistério insondável e imutável da Trindade”, mas que “nossa compreensão mudou e seguirá mudando”. A princípio, isto se parece com a distinção feita por João XXIII no discurso inaugural do Concílio Vaticano II, entre “a substância do depósito da Fé” e a “formulação pastoral”, ou aquela outra da constituição conciliar Dei Verbum (cf. n. 8), entre a Tradição enquanto constituinte e a Tradição enquanto progressiva. Mas uma coisa é a distinção entre a expressão essencial da doutrina e uma possível expressão pastoral acidental, ou entre a doutrina tradicional germinal e a mesma doutrina tradicional organicamente desenvolvida, e outra coisa é a distinção entre uma doutrina “insondável” (sic) e nossa compreensão: porque os dois primeiros pares dizem respeito a dois modos de compreender, mas o par de Tucho se aproxima perigosamente do par da heresia modernista, o agnosticismo sobre a Divindade e o gnosticismo do “sentimento religioso”, com o consequente erro da “evolução do dogma”.

Em outra entrevista, dado ao site Perfil (no dia 03/07), Tucho esteve mais à vontade e, ao comentar a investigação feita por Roma a respeito de uma suposta visão errada sua sobre os homossexuais, disse que “lidou meses com essa besteira (tontería)”. Também aludiu ao gesto do teólogo Yves Congar, que urinou na porta do Santo Ofício “como gesto de desprezo frente a esta metodologia persecutória”. Ao final afirmou que o pontificado de Francisco é “a verdadeira e plena aplicação do Concílio Vaticano II”.

Tal Concílio, o acontecimento eclesial mais importante dos últimos tempos, quis oferecer um gesto de “misericórdia” ao mundo não-católico, e adotou a metodologia do “diálogo”. No pontificado atual, esse diálogo, do ponto de vista interno, assumiu a face da “sinodalidade”: um “caminhar juntos” de caráter “democrático”, onde doutrinas milenares (como o sacerdócio masculino exclusivo e a moralidade sexual) são colocadas diariamente em xeque, reduzidas a “questões disciplinares” (sic), especialmente pelo “caminho sinodal alemão”. 

Também aludiu, ao gesto do teólogo Yves Congar, que urinou na porta do Santo Ofício “como gesto de desprezo frente a esta metodologia persecutória”

A grande inquietação que tomou conta de muitos católicos comprometidos e conscientes de sua fé ao redor do mundo, a partir da nomeação de dom Tucho Fernández, diz respeito à possibilidade de que o novo prefeito, pela sua índole teológica, seja alguém disposto a ratificar as propostas dos bispos erráticos. 

Ora, primeiramente, o horizonte conciliar, enquanto tal, por sua opção metodológica, exclui a definição doutrinal, é incompatível com a mesma; assim, qualquer exortação apostólica pós-sinodal, ou reitera e confirma a doutrina de sempre (do magistério extraordinário ou do universal) de modo “pastoral”, ou, caso “inove” contra a Tradição apostólica, carecerá de autoridade. Em segundo lugar, o dogma da infalibilidade papal e eclesial proíbe que a Igreja proclame solenemente erros teológicos e heresias, de modo que, se algum desses temas fosse conduzido efetivamente a uma definição jurídica formal, os erros seriam todos afastados e a verdade brilharia; entretanto, se houvesse uma simulação de dogmatização de alguma impiedade herética, então nós conheceríamos o sentido reverso do dogma...

O melhor a fazer é rezar confiadamente. Ao Bispo de Roma compete a escolha, e ele responderá por ela diante de Deus. A nós, a apreensão que não retira a paz interior, a crítica devida e a oração incessante pela Igreja e por nossa perseverança. Se necessário, a justa resistência ao erro. Mas temos uma confiança absoluta, pois Cristo é o amigo (cf. Jo 15, 15) que prometeu que as portas do inferno não prevalecerão (cf. Mt 16, 18).

Joathas Bello, doutor em Filosofia pela Universidad de Navarra, autor do livro O Enigma do Concílio Vaticano II

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