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Victor Fernández, ao assumir a Arquidiocese de La Plata, em 2018; arcebispo será o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé.
Victor Fernández, ao assumir a Arquidiocese de La Plata, em 2018; arcebispo será o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé.| Foto: Arquidiocese de La Plata

O papa Francisco resolveu não renovar por mais cinco anos o mandato de seu colega jesuíta Luis Ladaria Ferrer à frente do Dicastério para a Doutrina da Fé – na verdade, o cardeal Ladaria até já estava numa espécie de “prorrogação”, pois havia iniciado seu período como prefeito em julho de 2017. Para substituir o espanhol, Francisco chamou um velho conhecido e auxiliar: Victor Manuel “Tucho” Fernández, até agora arcebispo de La Plata. Uma nomeação que não caiu bem entre os setores mais conservadores, tanto pelo nome quanto por alguns trechos da carta papal em que Francisco comunica a Fernández seu novo posto.

Não é que faltem credenciais acadêmicas a Fernández: ele foi professor e diretor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina, e em 2009 o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, o escolheu para ser reitor. Ocupou vários cargos de caráter doutrinal na comissão episcopal argentina e participou da comissão de redação do documento final da conferência geral do episcopado latino-americano de 2007, realizada em Aparecida. O problema é como Fernández tem usado essas credenciais. Ele tem sido o ghost writer de Francisco para o bem e para o mal – e, quando digo “para o mal”, sim, estou falando do capítulo VIII de Amoris laetitia, exortação que o novo prefeito defendeu enfaticamente (de forma bem compreensível, claro, tratando-se de algo saído de sua mente), a ponto de dizer que “em muitos assuntos, sou bem mais progressista que o papa”. Não surpreende que a então Congregação para a Doutrina da Fé tenha “segurado” a posse de Fernández na UCA por quase um ano e meio, enquanto averiguava queixas sobre a ortodoxia do indicado; nem que o cardeal Gerhard Müller, quando era prefeito do mesmo dicastério que Fernández assumirá agora, tenha criticado duramente alguns pronunciamentos do então reitor.

O episódio envolvendo a reitoria da UCA é significativo, porque Fernández foi nomeado bispo poucos meses após a eleição de Francisco, em uma escolha que, se por um lado era uma forma natural de prestigiar um colaborador próximo, por outro lado foi vista também como uma “resposta” à Cúria Romana por ter atrapalhado a nomeação de Fernández como reitor. Fontes da universidade ouvidas pela Catholic News Agency em 2018, quando Fernández deixou a UCA para assumir a arquidiocese de La Plata, disseram que, quando da nomeação episcopal, Fernández se portou como um autêntico “mau vencedor”, escrevendo artigos em publicações católicas argentinas com referências nada elogiosas a seus críticos. As mesmas fontes, no entanto, também afirmam que, durante seu período como reitor, Fernández teve postura bem ativa na defesa do ensinamento da Igreja sobre temas como aborto, eutanásia e defesa da família, seja por conta própria, seja apoiando outros professores da UCA, inclusive quando esses temas estavam na ordem do dia do debate político argentino.

Como esperar que Fernández e o dicastério que presidirá “guardem o ensinamento que brota da fé” sem apontar e condenar o erro, oferecendo como resposta a verdade?

É de se perguntar se Francisco também não teria em mente esse episódio de 2009-2011 quando escreveu, na carta a Fernández, sobre os “métodos imorais” que o Dicastério para a Doutrina da Fé “passou a usar em outros tempos”. Teólogos “progressistas” como Andrea Grillo já se apressaram a dizer que os “métodos imorais” seguem sendo empregados até hoje. Francisco se referiu a esses tempos nos quais, “em vez de promover o conhecimento teológico, perseguiam-se possíveis erros doutrinários”, acrescentando que “o que espero de você é, sem dúvida, algo muito diferente”.

Diferente em que sentido? Francisco afirma que a finalidade principal do dicastério é “guardar o ensinamento que brota da fé para ‘dar razão à nossa esperança, mas não como inimigos que apontam e condenam’”, e que “precisamos que a Teologia esteja atenta a um critério fundamental: considerar ‘inadequada toda concepção teológica que, em última instância, questione a onipotência de Deus e, sobretudo, sua misericórdia’. Precisamos de um pensamento que saiba apresentar de forma convincente um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as chama ao serviço fraterno”.

Misericórdia, sabemos, é um dos temas centrais do pontificado de Francisco. Mas misericórdia não é passar a mão na cabeça do pecador e dizer-lhe que pode continuar pecando porque, no fim, Deus o ama e é misericordioso. Como eu disse na semana passada, Deus e a Igreja amam e acolhem o pecador, mas pedem-lhe que mude de vida. Deus salva, liberta, perdoa, mas é preciso querer ser perdoado. Deus é suma misericórdia, mas também suma justiça, e dá a cada um o que cada um pediu em vida: se pelo pecado mortal alguém diz que deseja ver Deus bem longe, Deus atenderá esse desejo na vida eterna. “Corrigir os que erram”, lembremo-nos, é uma das obras de... misericórdia. E como esperar que Fernández e o dicastério que presidirá “guardem o ensinamento que brota da fé” sem apontar e condenar o erro, oferecendo como resposta a verdade? Deixar que alguém permaneça no erro nada tem de misericordioso, e isso vale também para os pecados “intelectuais”.

Num dos capítulos de um sensacional livro de C.S. Lewis (e qual dos livros dele não o é?), O grande divórcio, o narrador encontra um fantasma que depois identifica como um bispo. Para quem não conhece a obra, nela um ônibus leva pessoas do inferno ao céu; cada passageiro é recebido por alguém que já está lá e que os conheceu em vida, e recebe a chance de ficar no Paraíso se quiser. Mas (e aqui dou um spoiler), incrivelmente, ninguém fica. O interessante do livro é que entre os condenados não há assassinos em série, coisas do tipo; eles são (outro spoiler) gente comum, inofensiva, mas que deixou seus apegos tornarem-se totalmente desordenados. O bispo, no caso, era incapaz de fazer a passagem de condenado a salvo porque estava demasiadamente agarrado às próprias ideias heréticas, à sua “independência intelectual”. E o seu interlocutor, que tenta convencê-lo a ficar no céu, lembra que ambos tinham sido intoxicados pelo espírito da época, mas ele percebera a verdade a tempo, enquanto o outro não.

É mais ou menos nesse estágio que boa parte da Igreja Católica se encontra hoje. A missão de Fernández é impedir que isso se propague, defendendo a doutrina com clareza, e corrigindo e criticando também, quando a situação o exigir. A nossa fé nos diz que a Igreja jamais poderá ensinar o erro, mas a omissão pode permitir que a confusão se espalhe. O arcebispo Fernández que defende enfaticamente o relativismo doutrinal do capítulo VIII de Amoris laetitia não me parece capaz de cumprir essa missão; já o arcebispo Fernández que enfrenta abertamente o governo Kirchner e a Suprema Corte da Argentina em defesa do nascituro sim. Rezemos para que seja este segundo Fernández a desembarcar em Roma para assumir sua nova tarefa, e sigamos rezando para que Francisco faça boas escolhas e seja um papa como Deus quer, não como eu quero, não como você quer, não como ele mesmo quer.

Cada vez menos joelhos se dobram diante do Deus eucarístico

Tenho um amigo padre, e mais não digo sobre ele, que num aspecto tem tido muito azar: sucede párocos cuja fé na Eucaristia, ou ao menos sua devoção eucarística, é um tanto questionável. Na paróquia onde estava, com uma igreja matriz bonita, com cara de igreja mesmo, seu antecessor havia removido os genuflexórios dos bancos, diminuído o espaço entre eles – não chega a ser uma classe econômica de avião, mas fica perto –, e, como se não bastasse, parafusou os bancos no chão da igreja! Agora, ele está numa outra paróquia, substituindo um sacerdote que gastou o que a paróquia tinha e o que não tinha (literalmente) em uma reforma de caráter muito duvidoso, e agora, em vez dos tradicionais bancos de igreja, temos fileiras de cadeiras de plástico, daquelas empilháveis.

“O homem que aprende a crer também aprende a se ajoelhar, e uma fé e uma liturgia que já não estão acostumadas ao ajoelhar-se estão profundamente doentes.”

Cardeal Joseph Ratzinger, em “Introdução ao Espírito da Liturgia”

O resultado? Raríssimas são as pessoas que se ajoelham durante a consagração. Era impossível? Nem de longe: na primeira igreja você precisa de um pouco de contorcionismo, mas dá; na paróquia atual, é ainda mais fácil, você pode até afastar a cadeira para ganhar espaço. “Ah, mas é só refazer os bancos”, o leitor haverá de dizer. Eu sinceramente não sei quando custaria reformar todos os bancos e todo o piso da primeira igreja (porque ficariam centenas de furos no chão para serem consertados), e no caso da segunda igreja eu sei que a paróquia ainda está pagando a reforma anterior a ponto de não sobrar nada no fim do mês. E não importa o que o padre meu amigo diga; uma vez adquirido o mau costume de permanecer em pé durante o milagre em que o pão e o vinho se tornam o próprio Deus (refiro-me, claro, a quem pode se ajoelhar), é tarefa hercúlea desfazê-lo.

No seu Introdução ao Espírito da Liturgia, o então cardeal Joseph Ratzinger, depois de uma belíssima explicação sobre as raízes bíblicas e históricas do ato de se ajoelhar, conclui (em tradução livre minha da versão em inglês; agradeço a leitores que tenham a obra em português): “O homem que aprende a crer também aprende a se ajoelhar, e uma fé e uma liturgia que já não estão acostumadas ao ajoelhar-se estão profundamente doentes. Onde o ato de se ajoelhar se perdeu, precisa ser redescoberto, de forma que, em nossa oração, permaneçamos em comunhão com os apóstolos e mártires, com todo o cosmos, em união com o próprio Jesus Cristo”. Que coloquemos em prática esse conselho, e que nos lugares onde reformas desastrosas eliminaram os genuflexórios os padres insistam, expliquem, façam o possível para que os joelhos voltem a se dobrar diante de Jesus na eucaristia.

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