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O presidente da República, Jair Bolsonaro
O presidente da República, Jair Bolsonaro| Foto: Marcos Correa/PR

O desafio de abrandar os efeitos econômicos, sociais e políticos da crise global instaurada pela pandêmica Covid-19 tem levado os chefes de Estado em todo o mundo a adotarem severas medidas que envolvem direitos e garantias fundamentais elementares à subsistência humana, como o direito à vida, liberdade, igualdade, dignidade e à saúde.

No Brasil, foi decretado o estado de calamidade pública, com duração até 31 de dezembro deste ano, motivado pela necessidade de elevar os gastos públicos para proteger a saúde, emprego e queda da arrecadação. Ele tem previsão no artigo 65 e incisos da Lei de Responsabilidade Fiscal, que, em termos práticos, suspende os prazos para ajustes das despesas de pessoal e dos limites do endividamento para o cumprimento das metas fiscais, bem como para a adoção dos limites de empenho (contingenciamento) das despesas.

Nesse cenário, atenuar os prejuízos e conciliar políticas públicas para salvar vidas e a economia do país pode ser considerado um hard case para o direito, ao nos depararmos com uma situação complexa que envolve, de um lado, o direito à vida, e do outro a saúde econômica do país (a exemplo da manutenção de empregos e abastecimento da população).

Ou seria melhor dizer que estamos diante de um conflito axiológico entre direito à vida versus direito à vida?

Fato é que, na intenção de adotar providências eficientes de combate à Covid-19 e garantir os direitos fundamentais da coletividade, foi editada a Medida Provisória 926, alterando alguns dispositivos da Lei 13.979/2020, dispondo sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do vírus.

Complementar às medidas dispostas na supracitada lei federal, foi publicado o Decreto 10.282/2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais nesse momento de crise, estabelecendo, por exemplo, em rol não taxativo, a produção e distribuição (direta e indireta) de alimentos como atividades que não podem ser interrompidas enquanto perdurar o enfrentamento da pandemia no país.

Não obstante o consenso de ser vital garantir o funcionamento dos serviços públicos de saúde e o abastecimento da população, foram contestadas pelo PDT, via ADI 6.341, a referida MP, a Lei 13.979/2020 e, por arrastamento, o Decreto 10.282/2020, sob o argumento cerne de que a MP é matéria reservada a lei complementar e, portanto, supostamente viola as disposições da autonomia federativa dos estados, Distrito Federal e municípios. Em decisão monocrática, o ministro Marco Aurélio deferiu parcialmente o pedido cautelar do autor, considerando a competência para a tomada de providências normativas e administrativas dos entes federados como concorrente.

Em análise preliminar, à luz da competência concorrente, é incontestável a atribuição da União para editar normas gerais no que tange à proteção e defesa da saúde, nos termos do artigo 24, XII, § 1.º, da Constituição, com a finalidade de manter o padrão mínimo de funcionamento dos serviços essenciais e uniformidade normativa. Tanto é assim que, havendo norma geral estadual precedente à da União, a primeira (elaborada pelo estado) terá sua eficácia suspensa no ponto em que for contrária à nova lei federal.

Nesse sentido se manifestou a corte suprema no Agravo Regimental em Mandado de Injunção (MI 1.832 AgR/DF), ao afirmar que a competência legislativa concorrente não afasta, contudo, a necessidade de tratamento uniforme sobre o tema da previdência social, que exige edição de norma regulamentadora de caráter nacional e, portanto, a atuação normativa da União.

Já em relação à competência administrativa comum dos entes federativos, em caso de conflito, deve ser utilizado o critério da preponderância de interesses, uma vez que, mesmo não havendo hierarquia entre os entes da Federação, em respeito à autonomia de cada um, é possível falar na hierarquização de interesses, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos mais restritos (dos estados).

O próprio Supremo Tribunal Federal já utilizou a teoria da prevalência de interesses no julgamento da ADI 3.835, como critério para solução de conflitos, sustentando a competência da União nos casos em que a matéria está relacionada a interesse geral e for transcendente a interesses locais e regionais, devendo, portanto, haver um tratamento nacional e uniforme.

Não é demais lembrar que é da União a competência para tratar sobre os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional; ferroviário e aquaviário; portos marítimos, fluviais e lacustres; e transporte aéreo, entre outras disposições elencadas no artigo 21 da Constituição Federativa de 1988.

Portanto, no atual estado de calamidade, o desalinhamento de ações normativas entre os entes, que coíbam o abastecimento nacional, o fornecimento de medicamentos e a circulação necessária de pessoas e bens andam em sentido contrário à preservação da coesão social e operabilidade de serviços públicos de competência reservada à União.

Sendo assim, a prevenção para o surgimento de novos conflitos está na harmonia das relações federativas, que, por sua vez, dialoga com a preservação do Estado Democrático de Direito, onde a preponderância da razoabilidade e da cooperação entre os entes federados é indispensável para combater a pandemia e suavizar os efeitos da crise econômica.

Marcela Pitombo, advogada especialista em Direito Tributário e pós-graduada em Tributação no Agronegócio, é membro da Comissão do Agronegócio da OAB/BA.

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