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“Os médicos disseram que não havia nada que pudessem fazer. Eles fizeram tudo que podiam, que é um caso irreversível. Eu acho que ele está dormindo e que poderá sair do coma. Eu acho que pode ser um erro, ele ainda está vivo; seu coração está batendo. Você toca a pessoa e ela está quente, seu sangue está correndo... Somente o cérebro está morto, mas o resto ainda está vivo.” (Depoimento de uma mãe com o filho em morte encefálica).

Desde os primórdios da humanidade, o conceito de “morte” é associado a situações em que uma pessoa não respira, o coração não bate ou a cabeça está separada do corpo. Nestes casos, em poucas horas o corpo estará frio, com extremidades azuladas e rígido, caracterizando sinais inequívocos de “ausência de vida”. O ritual do velório presta-se às despedidas em um sentido afetivo, mas também é um período de observação do cadáver, quase uma aferição coletiva de que existe “morte” e o corpo pode ser sepultado.

Uma pessoa não morre apenas porque parou de respirar ou seu coração não bate. Estas situações são tecnicamente passíveis de reversão, com as manobras de reanimação cardiovascular e cuidados nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Contudo, se uma parada cardiorrespiratória persistir por mais que três a cinco minutos, o sangue oxigenado não chegará ao cérebro e poderá estabelecer uma lesão cerebral grave, irreversível e incompatível com a vida. Nesta situação, conhecida como morte encefálica, os cuidados de UTI podem manter o corpo (o cadáver) quente, corado e com os órgãos funcionando por alguns dias ou semanas. Mas isto não muda o fato de que, nesta pessoa, o cérebro está irremediavelmente lesionado e não funcionante. Quadros semelhantes ocorrem também em lesões como traumatismos cranianos, acidentes vasculares cerebrais e outros, que produzem lesões cerebrais incompatíveis com a vida.

Como os médicos podem ter certeza de que uma pessoa em morte encefálica está realmente morta? Como ter a certeza de que pode ser retirado o suporte vital fornecido pelas UTIs e considerar a doação de órgãos (fígado, coração, rins e outros) fundamentais para a sobrevivência de outras pessoas?

Uma pessoa não morre apenas porque parou de respirar ou seu coração não bate

Em 1997, a Lei 9.434 deu competência ao Conselho Federal de Medicina para definir os critérios para diagnóstico da morte encefálica. Naquele mesmo ano, a Resolução CFM 1.480 estabeleceu que “a comprovação da morte encefálica deve ser realizada utilizando critérios precisos, bem estabelecidos, padronizados e passíveis de serem executados por médicos nos diferentes hospitais” e que “a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte”.

De forma sucinta, podemos dizer que são necessários dois exames clínicos, realizados por dois médicos diferentes, para confirmar a ausência permanente de função do tronco cerebral; um teste de apneia, para comprovar a ausência de movimentos respiratórios; e um exame complementar para confirmar a ausência permanente de função cerebral. Vale ressaltar que esta metodologia padronizada é muito mais abrangente e segura que a utilizada na maioria dos países. Revendo os raros casos publicados de dúvidas diagnósticas, observa-se que em nenhum deles foi utilizada uma metodologia tão rigorosa quanto a brasileira.

Nos últimos 20 anos, a morte encefálica foi efetivamente comprovada em mais de 120 mil pacientes utilizando os critérios da Resolução CFM 1.480/1997, confirmando a segurança, o grau de absoluta certeza e a ampla aceitação desta metodologia para determinação inquestionável da morte em nosso meio.

Leia também:Quais os cuidados médicos que desejo no fim da vida? (artigo de Gerson Zafalon Martins, publicado em 21 de janeiro de 2018)

Leia também: Os mitos na fase final da vida (artigo de Cicero Urban, publicado em 4 de janeiro de 2016)

Nos últimos seis anos houve uma ampla discussão com as sociedades médicas e o CFM, considerando os novos conhecimentos médicos sobre a fisiopatologia da morte encefálica e a experiência acumulada nos últimos 20 anos, levando ao aperfeiçoamento dos procedimentos para determinação da morte. Deste debate resultou a Resolução CFM 2170, publicada em 15 de dezembro de 2017, que mantém em essência a mesma metodologia da anterior, mas acrescenta maior segurança, clareza e agilidade na determinação da morte encefálica. Os tópicos mais relevantes da resolução são os seguintes:

a) Tornar a determinação da morte encefálica uma etapa obrigatória do atendimento dos pacientes com lesão encefálica conhecida, irreversível e capaz de causar um quadro de coma não reativo e apneia persistente. Os pacientes em morte encefálica estão irremediável e comprovadamente mortos, e a data e a hora da morte que constará na Declaração de Óbito será a da conclusão da determinação da morte encefálica. Esta conduta deverá reduzir o desconforto dos familiares, ao confirmar a morte e permitir o enterro do seu ente querido;

b) Ampliar o nível de experiência exigido dos médicos que realizam a determinação da morte encefálica. Este é um procedimento de certeza absoluta, que não admite nenhum erro. Os médicos que realizam a determinação da morte encefálica devem estar previamente capacitados; isto é, ter pelo menos um ano de treinamento no atendimento de pacientes em coma e apneia (UTI) e já ter realizado, pelo menos, dez determinações de morte encefálica ou feito treinamento em um curso específico para esta capacitação;

c) Detalhar mais a metodologia para realização dos procedimentos de determinação da morte encefálica e reduzir o intervalo mínimo entre os dois exames clínicos para uma hora, permitindo maior segurança, padronização e brevidade na realização dos procedimentos;

d) Enfatizar a regra – que já consta no Código de Ética Médica – segundo a qual os médicos que atuem em equipes de transplante de órgãos não podem participar dos procedimentos de determinação da morte encefálica; e

e) Determinar que os familiares do paciente devem ser informados, de forma clara e inequívoca, da suspeita de morte encefálica, de como será feita a determinação e dos resultados de cada uma das etapas, e apenas após esta confirmação da morte poderá ser feita a solicitação de doação de órgãos aos familiares.

O entendimento do “estar morto” é milenar. Já o conceito de morte encefálica é algo relativamente novo

Doar os órgãos de um ente querido que não necessita mais deles, pois está morto, é um gesto grandioso e que poderá salvar ou melhorar significativamente a vida de alguém. Mas, para evitar mal-entendidos com os familiares, as conversas sobre doação só devem ocorrer após a confirmação da morte, pois a identificação de possíveis doadores, por mais meritória que seja, não deve ser o motivo para realização da determinação da morte encefálica, e sim sua consequência.

O entendimento do “estar morto” é milenar. Já o conceito de morte encefálica é algo relativamente novo, possível há pouco menos de 50 anos pelo aparecimento das UTIs. Não é difícil, portanto, compreender a desconfiança e o desconhecimento da população sobre esta forma de apresentação da morte. Mas podemos assegurar a todos que a metodologia de determinação da morte encefálica do CFM nos dá a certeza absoluta de que uma pessoa em tal condição está indubitável e irremediavelmente morta.

Carlos Eduardo Soares Silvado, doutor em Medicina Interna e professor assistente de Neurologia da UFPR, é chefe do Serviço de Neurologia do Hospital de Clínicas/UFPR e membro da Câmara Técnica de Morte Encefálica do Conselho Federal de Medicina.
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