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| Foto: Alexander Nemenov/AFP

Vocês devem ter percebido que a Rússia anda em destaque nos noticiários ultimamente: invadiu a Ucrânia, dopou a equipe olímpica, interferiu nas eleições norte-americanas e parece que andou borrifando um agente nervoso mortal no interior da Inglaterra. Como se não bastasse tudo isso, dá a impressão de ter enfeitiçado Donald Trump, nosso presidente arrogante, fazendo com que se esqueça de toda e qualquer cautela, concordando em se encontrar com Vladimir Putin em uma reunião privada em Helsinki este mês.

Para alguém como eu, que passou a vida escrevendo e pensando na Rússia praticamente a vida inteira, os últimos anos têm sido uma experiência estranha; leio as notícias como todo mundo e fico horrorizado; aí visito a Rússia e me vejo confuso e dividido.

Eu nasci em Moscou, em 1975, no que era a União Soviética, e vim para os Estados Unidos com minha família quando tinha 6 anos. A princípio, moramos com uns amigos nossos da terra natal, os Moshkevich, na Grande Boston; depois, com a ajuda de uma instituição de caridade local, conseguimos alugar um lugar.

Meus pais adoravam a cultura, a literatura e o cinema russos, mas não gostavam da Rússia, pelo menos como ela era na época. E adoravam os EUA por causa da liberdade e da abundância. Conhecidos nossos contavam a história da imigrante soviética que caiu no choro a primeira vez que foi a um supermercado norte-americano, com sua fartura infinita – não para rir da pobre, mas porque sentiram a mesma coisa. Como um único lugar podia oferecer tantas marcas de maionese? Tantas frutas diferentes? Tantos tipos de cereal infantil?

Tendo vivido na Rússia, entendo perfeitamente a complicação que é aquele lugar

Já no meu caso, eu só queria me adaptar. Por isso, mês a mês, ano a ano, fui perdendo minha “sovieticidade”; como disse uma vez Tchekhov sobre sua ascendência, fui me “espremendo” para eliminar qualquer resquício russo de mim mesmo, gota a gota. Meus pais já tinham partido, o que foi meio que um ponto final. Éramos norte-americanos.

Minha mãe morreu de câncer quando eu cursava o último ano do ensino médio. Ela era crítica literária especializada em literatura russa e a pessoa da nossa família mais ligada à terra natal. Sua morte poderia facilmente ter interrompido nossa conexão, mas, para mim, foi o contrário. Decidi, no primeiro ano de faculdade, cursar História e Literatura Russas como uma maneira de me manter ligado a ela de alguma forma. Faria um semestre e seguiria em frente. Isso foi no início dos anos 90, logo depois do colapso da União Soviética, ou seja, conseguir uma vaga nessas matérias não foi exatamente complicado.

Só que, em vez de seguir adiante, eu fiquei. E, antes que me desse conta, tinha embarcado para passar na Rússia meu ano sabático. Assim que me formei, comecei a escrever sobre a cultura e a política russas e a traduzir textos naquele idioma.

Entretanto, parece que chegara atrasado: quando comecei a publicar lá, a era Boris Yeltsin tinha acabado em colapso e ignomínia, e o próprio, substituído por um pequeno capeta cinzento chamado Vladimir Putin. O interesse na Rússia caiu e depois implodiu. Durante anos, a única maneira garantida de vender um artigo sobre a Rússia era falando de alguém que tinha sido morto ou preso, ou descobrindo outra forma criativa de destacar o diabolismo de Putin.

Leia também: Os russos de hoje e o passado comunista (artigo de Jacir Venturi, publicado em 21 de junho de 2017)

Leia também: Sovieticus debilus (artigo de Friedmann Wendpap, publicado em 28 de dezembro de 2016)

E me lembro de um editor que, em 2009, me mandou um e-mail para perguntar se era verdade que Putin preferia Dostoiévski a Tolstói. Fiquei de queixo caído; uma rápida busca no Google revelou que um colega desesperado tinha, de fato, escrito um artigo sobre a negligência a que estava submetida a propriedade de Tolstói em Yasnaya Polyana, sem dúvida resultado de alguma trama putinista desonesta.

Aí, em 2014, as forças russas invadiram a Crimeia; o interesse no país voltou a crescer. Depois das eleições de 2016 nos EUA, o fascínio disparou.

Nada mais deprimente, uma vez que a invasão russa da Ucrânia resultou em milhares de mortes. E também pelo que o país inevitavelmente se tornou desde então: pária entre as nações, trancando-se na Fortaleza Russa, temendo o mundo à sua volta.

Fiquei deprimido também com a cobertura da imprensa dos EUA, principalmente depois das eleições, pois praticamente negligenciou o longo histórico norte-americano de ingerência nas questões domésticas de muitos, muitos países, incluindo a própria Rússia. Parte desse sentimento era uma revolta perfeitamente compreensível em relação ao papel russo, ainda que marginal, na eleição de Trump, mas o grosso da discussão ameaçava esvaziar uma análise sobre as outras razões por que ele fora eleito.

As pessoas não existem na esfera política o tempo todo, ou mesmo grande parte dele

Para mim, enquanto observador russo, foi um bom negócio. A universidade em que leciono deu sinal verde para a criação de uma nova matéria, que gerou grande interesse dos alunos, o que não teria acontecido há alguns anos. Por que, então, eu me sentia tão mal com a coisa toda?

Talvez seja porque, tendo vivido na Rússia, entendo perfeitamente a complicação que é aquele lugar. Viver ali não é um exercício contínuo de prisão, tortura, tiros; as pessoas seguem rotinas, vão às compras, mexem no celular, namoram, se casam. Vão para o trabalho de manhã, procuram lugar para estacionar, tentam encaixar a academia no dia a dia. Contam piadas. No meio tempo, sim, tem gente sendo presa; algumas acabam torturadas; outras, mortas.

Em Moscou, em março deste ano, vivi essa dissonância cognitiva mais uma vez. Fazia tempo que não ia para lá, e fiquei surpreso com as mudanças que presenciei. Havia um número bem maior de estações de metrô – desde 2009, foram inauguradas mais de 20. No mesmo período, em Nova York criaram-se três, com grande alarde. Havia um sem-fim de cafés, pequenos restaurantes acessíveis e gente nas ruas. Obviamente ninguém a confundiria com Paris, mas, mesmo assim, mal daria para reconhecê-la como a mesma metrópole de 1998.

Leia também: A ordem que desmorona (artigo de Demétrio Magnoli, publicado em 30 de dezembro de 2016)

Ao mesmo tempo, bastou ligar a televisão e lá estava a paranoia total com os bombardeios da Otan, os argumentos fracos e agressivos de geopolítica, os filmes ruins sobre a Segunda Guerra Mundial. O clima político é tóxico. Putin ficará mais seis anos no governo e convenceu a si mesmo e aos que estão à sua volta de que o país entraria em colapso se ele deixasse o poder. A Rússia entrou em uma nova idade das trevas e não há previsão de fim em vista.

Porém, se há uma coisa que aprendemos neste ano e meio desde que Trump assumiu o poder, é que as pessoas não existem na esfera política o tempo todo, ou mesmo grande parte dele. Isso pode acontecer no Facebook e no Twitter, ou enquanto assistem às notícias, mas, além disso, a maioria consegue fazer e pensar em outras coisas. O que não é necessariamente bom; em tempos de emergência, por exemplo, é ruim. Mas o clima não pode ser emergencial o tempo todo, nem mesmo nos EUA de Trump, nem na Rússia de Putin. Há muitos aspectos da vida, do pensamento e até da política russa que não estão sob a supervisão de Vladimir.

Como, então, se sente este observador russo de longa data? É mais ou menos como ver sua banda obscura favorita ficar famosa por causa de um detalhe idiota, como a destruição de um quarto de hotel – que, no caso em questão, é metáfora para a ordem mundial pós-guerra. Mas não sei; nunca me interessei por nenhuma banda obscura. Para mim, a Rússia era o que mais se aproximava de um interesse pouco comum. Eu era fã de seus primeiros álbuns, “Socialismo Tardio”, “Perestroika”, “Desindustrialização”... mas, hoje em dia, todo mundo os ouve.

Keith Gessen é autor, mais recentemente, de “A Terrible Country”.
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