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No momento em que escrevo, persiste o impasse entre médicos e pajés no Amazonas a respeito de como tratar uma menina índia de 12 anos picada por uma cobra. Os médicos identificaram sinais de necrose no ferimento e querem tratá-la de acordo com os procedimentos da medicina convencional para – acreditam – salvar-lhe a vida. No entanto, um tio da paciente exige que ela seja tratada de acordo com os rituais da tribo e para isso esgrime a Constituição Federal que garante o respeito às tradições, língua, costumes e formas de organização dos povos indígenas. O Ministério Público, tucanamente, recomendou que se conciliassem as duas abordagens, e assim a criança está sendo submetida a uma terapia híbrida de rituais indígenas e medicamentos alopáticos. Deus permita que dê certo e que a pobre indiazinha não tenha seu direito à vida sacrificado pelo exercício desse outro direito constitucional por parte de sua família, o do respeito às tradições.

Essa prevalência absoluta do respeito à tradição dos povos sobre as mudanças que vão se operando em todos os campos da atividade humana, que incluem os avanços nas ciências que tratam da preservação da vida, é fronteiriço de um obscurantismo imobilista e profundamente equivocado. Há tempos, transcrevi neste mesmo espaço um depoimento do deputado Aldo Rabelo horrorizado com uma viagem que havia feito a um aldeamento indígena na Roraima, em que observou que, enquanto os índios estavam morrendo de doenças intestinais causadas por água podre, um destacamento do Exército, vizinho, não podia lhes fornecer água potável, pois os "técnicos" da Funai não permitiam que se perturbasse o habitat "natural" da comunidade indígena.

Privar alguém de um tratamento médico eficaz (ou do acesso à água limpa) em nome do respeito à tradição significa várias coisas e todas elas preocupantes: significa, por exemplo, imaginar que a existência humana consiste em uma mera repetição dos costumes do passado, como se a própria vida e a mudança das condições em que ela se opera (para melhor e para pior) não devessem ser levadas em conta; no caso da medicina, voltam-se as costas para a penicilina, os antibióticos, a sulfa, a modificação genética e mesmo para os avanços higiênicos, que há décadas e séculos, comprovadamente, ampliam enormemente as possibilidades de preservar a vida e a saúde das pessoas. Voltam-se também as costas para o fato de que as sociedades contemporâneas pouco ou nada têm em comum com as sociedades tradicionais, uma vez que os valores tribais, familiares, grupais vão sendo inevitavelmente modificados por valores e práticas de sociedades de massa, compostas de multidões de indivíduos, interconectados por tecnologias, interesses e problemas comuns. Saber se a vida em uma sociedade urbana, de massa, é melhor ou pior do que o bucolismo de uma cidade do interior ou comparar a qualidade da ciência contemporânea com o conhecimento tradicional são outra conversa. Diga-se de passagem que, a julgar pela desenvoltura com que se adaptaram aos celulares, às filmadoras e às caminhonetes importadas, nem os próprios índios brasileiros, em sua maioria, se consideram primitivos, a não ser quando isso serve a alguns propósitos específicos. O tio da indiazinha, que deu entrevistas à TV, aliás, demonstra uma fluência verbal e um conhecimento da legislação constitucional invejável que não são típicas de um aborígene primitivo.

Nem todos os direitos constitucionais são da mesma hierarquia. O direito à vida se sobrepõe a qualquer outro, mesmo porque transcende à Constituição para se inserir no grupo dos direitos de todo e qualquer indivíduo, independentemente de leis de qualquer espécie. Além disso, as convicções de uma pessoa não podem colocar a vida de outrem em risco e podem se aplicar, no máximo, à própria vida. Se o tio das indiazinha, quando for mordido por uma cobra, decidir que a reza do pajé é melhor que o soro antiofídico, ótimo para ele. Mas não pode colocar a vida da sobrinha em perigo para fazer valer as suas crenças.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUC PR.

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