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Dedicar mais tempo e energia aos filhos e cônjuges ajuda na formação de uma família feliz
Imagem ilustrativa.| Foto: Shutterstock

As varas de família existem para resolver os problemas criados pela existência das varas de família. Essa frase não é do Douglass North, Nobel de Economia de 1993, mas poderia ser. Há um desenho institucional que convida as famílias ao litígio, especialmente quando há crianças envolvidas. Disputas violentas de guarda e convivência que, não raro, escorregam para atos de alienação parental são geralmente estimuladas pelos operadores do sistema. É parte do jogo, pois existe um jogo.

O filme História de um Casamento, de 2019, é um retrato de como as varas de família são manobradas por profissionais inescrupulosos nos Estados Unidos. Há nele uma cena de tribunal que remete ao clássico filme de 1979, de temática idêntica, Kramer vs. Kramer. Quando Nora (Laura Dern), advogada de Nicole (Scarlett Johansson), percebe que Charlie (Adam Driver) havia contratado um advogado para brigar (Ray Liotta), ela apressa sua cliente dizendo: “Vou ter de pedir coisas que eu geralmente não pediria. Este sistema recompensa o mau comportamento”. Não é diferente no Brasil.

A legislação, especialmente de guarda, deve primar por regras claras e objetivas, pois elas reduzem os incentivos à litigância e ao mau uso do sistema.

Coincidentemente foi no mesmo ano de Kramer vs. Kramer que Robert Mnookin e Lewis Kornhauser publicaram um dos artigos canônicos do direito de família americano: Bargaining in the Shadow of the Law: The Case of Divorce. Eles oferecem um acurado exame dos complexos incentivos que as instituições legais garantem aos homens e mulheres, pais e mães, quando precisam negociar a separação, a guarda e a convivência com os filhos. Nada disso é feito no vácuo. O desenho institucional determina o modo de ação dos “jogadores”. Em um dos grupos de WhatsApp de apoio às famílias em litígio, um pai comentou que ouviu de sua futura ex-esposa a seguinte frase: “Não pensa que tu vais ver a Maria Lúcia sempre que tu quiseres, pois no Judiciário não é assim, não!”.

Mnookin e Kornhauser argumentam que a legislação, especialmente de guarda, deve primar por regras claras e objetivas, pois elas reduzem os incentivos à litigância e ao mau uso do sistema para promover vinganças ou movimentos de aposta daqueles genitores mais afeitos ao risco: padrões jurídicos imprecisos exigem que um especialista estime o resultado provável se as partes forem ao tribunal. Um advogado pode ser necessário simplesmente para que uma pessoa saiba quais são suas moedas de troca.

Em disputas de guarda entre pais aptos, a pergunta pelo melhor não pode ser respondida, sendo, portanto, indeterminável.

Robert Mnookin foi um crítico do conceito de "melhor interesse da criança", critério que dominou o Ocidente no último século. Ele argumentava que em disputas de guarda entre pais aptos, a pergunta pelo melhor não poderia ser respondida, sendo, portanto, indeterminável. Esse critério, segundo Mnookin, apenas estimula o litígio e acaba convidando uma série de profissionais de outras áreas, muitos deles de formação duvidosa ou defasada, para palpitar em disputas complexas, fazendo avaliações superficiais. O Brasil adotou uma regra de guarda baseada nesse critério no Código Civil de 2002, determinando que a guarda seria dada ao genitor mais apto, mas essa regra não durou muito tempo, sendo alterada pelas leis da guarda compartilhada de 2008 e 2014. Mnookin não defendia a guarda compartilhada, de fato como quase todos daquele período ele acreditava que o modelo poderia causar prejuízos às crianças, mas dizia que esse modelo poderia cumprir a função de ser uma regra geral e objetiva que limitasse o incentivo ao litígio. Os estudos que provam os benefícios da guarda compartilhada são bem mais recentes que os principais artigos do autor.

No Brasil, a culpa pelo desenho institucional que estimula o litígio não é dos políticos. De fato, por duas ocasiões os representantes do povo fizeram um excelente trabalho ao estabelecer a guarda compartilhada como padrão. Na segunda vez, na lei de 2014, o comando legal foi inequívoco: a guarda será compartilhada, para que ela possa ser exercida a convivência será equilibrada, salvo exceções. Tudo resolvido? Não exatamente. As duas leis encontraram resistência na doutrina e jurisprudência.

A lei de 2008 continha a expressão “sempre que possível” como critério para a determinação do compartilhamento. O legislador tinha em mente situações fáticas, mas o sistema passou a entender que se houvesse litígio, não seria possível. Em razão disso, manter uma situação processual de conflito tornou-se a estratégia padrão nas varas de família e o Judiciário recompensava o mau comportamento dando a guarda ao litigante que já possuía a posse ou a guarda provisória da criança.

Com a lei de 2014 a expressão “sempre que possível” foi suprimida, mas a resistência cultural e institucional à guarda compartilhada mudou da aplicação de um critério, o “sempre que possível”, para um movimento coletivo de alteração do conceito de guarda. Dos livros doutrinários aos profissionais do Tik Tok, é clichê ironizar as pessoas dizendo que elas confundem guarda com convivência, que elas pensam que na guarda compartilhada a criança terá duas casas.

No Brasil, a guarda compartilhada passou a significar apenas divisão de responsabilidades – “sugerir decisões” e “decidir sugestões”.

Ora, na maioria dos países que adotam a guarda compartilhada e nos estudos sobre os benefícios desse regime, a dupla residência é parte fundamental do conceito. Na Suécia a criança fica uma semana com cada um dos pais. Em Portugal há um movimento semelhante privilegiando a residência alternada. Na França, o artigo 373º-2-9 do código francês passou a prever que "a residência do filho pode ser fixada alternadamente no domicílio de cada um dos progenitores”. Em vários estados americanos, como no Kentucky e no Wisconsin, a lei prevê divisão de tempo 50/50.

No Brasil, porém, a guarda compartilhada passou a significar apenas divisão de responsabilidades – “sugerir decisões” e “decidir sugestões”, rememorando a bela sacada do Herberto Sales. Ora, essa dimensão sempre esteve compartilhada no poder familiar. Redundância irrelevante. A inovação legal sempre repousou no compartilhamento da custódia física (convivência).

Esse desenho institucional que cria dificuldades para vender facilidades não favorece as famílias, ao contrário, prejudica pais, mães e sobretudo as crianças.

Em mais um exemplo da nefasta juristocracia, os operadores do sistema criaram o “lar de referência” na guarda compartilhada. Ou seja, a guarda dentro da guarda. É um produto especialmente desenhado para que pais e mães continuem brigando exatamente como brigavam na vigência das regras previstas no Código Civil de 2002. É a guarda VIP (Special Deluxe) que, por existir, precisa ser disputada. Mesmo a convivência, que deveria ser equilibrada, é dificultada ao genitor que não possui a guarda ou “lar de referência”. Muitos doutrinadores passaram a criticar a convivência igualitária ou equilibrada afirmando, com base em citações de gurus, místicos e pseudocientistas dos anos 70/80, que ela faz mal, muito mal.

O jurista Rolf Madaleno, no artigo A Lei da Guarda Compartilhada, recomenda que os operadores façam o exato oposto daquilo que a lei determina. "Portanto, a imposição da guarda compartilhada física não é automática e generalizada, mas muito ao revés, segue sendo excepcional e dependente de uma orientação técnica que demonstre ao juiz a viabilidade e a pertinência da instituição de uma guarda compartilhada de divisão de tempo, e que também não precisa ser de um tempo obrigatoriamente equilibrado", lembra o autor.

Ou seja, segundo o nobre doutrinador, o legislador criou uma regra geral que só se aplica excepcionalmente. Em todos os outros casos deve haver litígio judicial, com disputas sutis sobre irrelevâncias baseadas em argumentos retóricos fundamentados em afirmações já abandonadas pela psicologia contemporânea, tudo isso julgado por juízes que não possuem formação para deliberar sobre esses temas.

Esse desenho institucional que cria dificuldades para vender facilidades não favorece as famílias, ao contrário, prejudica pais, mães e sobretudo as crianças. Prejudica a sociedade, pois acaba auxiliando no afastamento ou abandono paterno. “Lute pelo seu filho”, diz o slogan do profissional que atende aos papais pela manhã, mas cujo slogan é diferente quando atende às mamães, à tarde. O direito deve servir às famílias e não as famílias servirem ao direito.

Márcio Leopoldo Maciel é formado em filosofia pela UFRGS e cursa direito na UFPEL.

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