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O “doltor” desembargador
| Foto: Pixabay

O racismo não aumentou, disse o ator Will Smith. Ele apenas vem sendo filmado, despertando. Foi o que aconteceu nas cenas de supremacia social protagonizadas por um desembargador, na praia em Santos. Aquele encontro filmado não pode ser classificado como supremacia branca, mas é o retrato da supremacia social que sempre imperou no Brasil.

O desembargador fez o que há séculos fazem os ricos instruídos diante de quem lhes parece pobre e analfabeto. Mesmo depois da abolição da escravidão e da proclamação da República, o Brasil continua aceitando a supremacia social, quase sempre identificada também com supremacia racial, em um país onde a riqueza é branca e a pobreza é negra.

A supremacia é por posição social: o outro em frente é inferior, por isso é tratado como analfabeto e pobre e sua notificação pode ser rasgada; sem valor, porque ele não pode multar um superior. Da mesma forma que, no Império, um plebeu não teria direito de multar um nobre. A República brasileira não conseguiu abolir o sentimento de nobreza superior dos ricos, dos “doltores”, dos desembargadores.

Em uma república democrática, as pessoas têm os mesmos direitos e deveres perante as leis e as relações sociais. Como na frase exemplar do ministro Marco Aurélio de Mello, “na rua, o guarda é a autoridade, não o desembargador”. Essa é a visão correta em uma república, mas não em uma sociedade com supremacistas sociais.

Além da supremacia racial dos brancos e da supremacia social, a democracia precisa eliminar também a supremacia de políticos que se consideram os únicos portadores da verdade. Com a mesma arrogância do desembargador, os supremacistas ideológicos rasgam argumentos dos opositores. Usam o mesmo slogan de “sabe com quem você está falando?”, e chamam quem discorda de analfabeto político.

Supremacistas raciais, sociais ou ideológicos têm em comum o desprezo à democracia. A supremacia ideológica impede o diálogo político e faz com que certos grupos se sintam donos da verdade, menosprezando tanto seus adversários quanto um policial branco a um homem negro nos Estados Unidos, um desembargador a um guarda municipal em Santos.

A democracia não pode tolerar a supremacia racial, nem social, tampouco a arrogância da supremacia política que tende a provocar regimes. Tudo isso ocorre porque há 130 anos de República nos negamos a implantar no Brasil o berço da democracia republicana: a escola pública de qualidade igual para todos.

Enquanto nossas crianças tiverem acesso a escolas de qualidade desigual, conforme a renda da família, o Brasil continuará vítima de “doltores” desembargadores que se sentem supremacistas sociais apenas porque têm um diploma universitário e um diploma de doutor que não merece.

Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília.

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