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O vereador Renato Freitas durante invasão à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Curitiba, em 5 de fevereiro
O vereador Renato Freitas durante invasão à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Curitiba, em 5 de fevereiro| Foto: Malik Fotografia/Mandato Renato Freitas

O encontro com o sagrado é parte essencial da natureza humana. Toda manifestação espiritualizada, seja por meio de religião ou outras formas de transcendência, compõe o cabedal de experiências fundamentais à existência das subjetividades e abstrações por que toda a humanidade passa.

Clive Staples Lewis, um dos gigantes intelectuais do século XX, provavelmente o escritor mais influente de seu tempo, afirma em sua obra A Abolição do Homem: “No momento preciso, então, da vitória do homem sobre a natureza, encontramos toda a raça humana submetida a alguns indivíduos, e tais indivíduos estarão sujeitos àquilo que em si mesmos é puramente ‘natural’ – aos seus impulsos irracionais”. A definição ora apresentada pelo eminente apologeta cristão corrobora com a atual indigesta posição de alguns indivíduos quanto à tolerância ao diverso, ao diferente e ao pluralismo doutrinário, que são valores basilares à convivência pacífica em sociedade.

Foi notícia nacional uma invasão à igreja católica de Nossa Senhora do Rosário, em Curitiba, no dia 5 de fevereiro, em protesto contra a morte violenta, absurda e abjeta do congolês Moïse Kabamgabe. Por ocasião do despautério ocorrido nas instalações do templo católico, um vereador do PT, Renato Freitas, esteve presente, em um evento no mínimo repulsivo e contrário a tudo que simboliza a expectativa democrática a que todos os cidadãos estão subordinados.

A Câmara Municipal de Curitiba admitiu quatro representações por quebra de decoro contra o vereador pela participação no ato. Em sessão plenária de 9 de fevereiro, Freitas pediu desculpas a pessoas que tenham se ofendido pela invasão do templo religioso. Segundo o vereador, a missa já havia sido encerrada. Para a arquidiocese, tratou-se de profanação injuriosa, e a lei e a livre cidadania foram agredidas.

Valhamo-nos do que diz a legislação em vigor. Segundo nossa Constituição Federal, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Como podemos observar, a Constituição assegura proteção integral aos locais de culto. Cabe, portanto, a toda a sociedade, principalmente aos atores institucionais e políticos, salvaguardar o texto constitucional por meio de garantias práticas de convívio pacífico e harmonioso dentro dos templos religiosos.

Evidentemente que o julgamento do evento da invasão à igreja merece o debate dentro da esfera jurisdicional competente, com a presunção da inocência sendo assegurada aos acusados e preservando o direito ao devido processo legal, bem como ao contraditório, sem o qual ninguém poderá ser considerado culpado. Mas não podemos negar a existência, no Brasil, de uma inquietude em relação à violação de direitos constitucionais do exercício livre de culto a diversos setores religiosos.

Para entendermos a vultosa violência contra as religiões no Brasil, basta que olhemos para alguns dados. Um estudo mostra que religiões de matriz africana foram alvo de 91% dos ataques no Rio de Janeiro em 2021. Da mesma forma, relatório da Comissão de Combate à intolerância Religiosa mostra que as religiões de matriz africana foram as que mais sofreram ataques no Rio de Janeiro. Segundo o Observatório de Liberdade Religiosa, os números são alarmantes, com 47 denúncias, a maior parte delas envolvendo agressões contra as religiões de matriz africanas. Os crimes mais comuns foram injúria contra pessoas (26%), injúria contra comunidades (23%) e vandalismo em templos (21%).

Cabe a toda a sociedade, principalmente aos atores institucionais e políticos, salvaguardar o texto constitucional por meio de garantias práticas de convívio pacífico e harmonioso dentro dos templos religiosos.

Em um país de pluralismo religioso, com leis que visam à liberdade de expressão, inviolabilidade dos templos religiosos e concretude da democracia multifacetada no espectro cúltico, é imprescindível que haja políticas públicas voltadas à proteção da identidade cultural da fenomenologia religiosa das comunidades eclesiais. De acordo com o Babalaô e pesquisador da UFRJ Ivanir dos Santos, muitos casos de intolerância religiosa poderiam ser evitados. O que falta aos governos são dados qualificados que levem a propiciar uma política nos espaços necessários onde existem os casos de intolerância religiosa. Neste sentido, sociedade civil e governos devem unir-se no sentido de garantir a liberdade do exercício pleno da espiritualidade e da religião nos termos da legislação e, além disso, do próprio processo civilizatório.

Jean-Paul Durand, doutor em Direito Canônico, afirma, em seu livro Instituições Religiosas, que “graças ao diálogo ecumênico e ao diálogo inter-religioso, as religiões puderam começar a estudar juntamente seu patrimônio espiritual, suas instituições”. Percebemos que, para o autor, a reflexão intercultural religiosa é harmônica e necessária à construção de uma identidade espiritual diversificada, rica e robusta, dentro das tantas manifestações que constroem a riqueza cultural brasileira.

A fenomenologia religiosa é característica indeclinável da espécie humana, como constituinte elementar, que dá vigência à espiritualidade e exercício à identidade cultural, ao processo de desenvolvimento do subjetivo e da imperiosa participação nos desencadeamentos da historicidade de cada comunidade dentro da tessitura social de uma nação. Ademais, o sentimento de pertença religiosa é evidenciável no trato coletivo como estratégia de emancipação psicológica, social, política e afins, de modo a assegurar a psique coletiva de grupos que comungam do mesmo bojo identitário e cultural.

A importância da práxis religiosa é explicada de modo insigne pelo filósofo Mário Sérgio Cortella. O autor evidencia que o pertencimento religioso é capaz de dar pulsão à vida e evitar o apequenamento desta. Entrementes, para Cortella, religião é “coisa de gente”, o que, certamente, implica qualitativamente no mérito da prática da espiritualidade.

Tomás de Kempis, na Imitação de Cristo, versa que “O humilde conhecimento de si próprio é a vereda mais correta para Deus do que as profundas pesquisas da ciência”. Isso é notório à medida que alcançamos o conhecimento de que somos limitados por nossos ideais, mas que estes podem e devem ser consagrados ao amor pelo sagrado ser humano e divino que habita em nós! Fiquemos com os sábios versos egípcios antigos: “Considerai aquele que conheceis na mesma medida que aquele que não conheceis”.

Edgar Talevi de Oliveira é licenciado em Letras, pós-graduado em Linguística, Neuropedagogia e Educação Especial e bacharel e mestre em Teologia.

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