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Acabou o tempo em que acreditávamos que ao Poder Judiciário cabe promover a justiça e ao Ministério Público, zelar pela coisa pública. À medida que o mundo se movimenta, vemos que as coletividades que "antes eram voltadas para o exterior são substituídas por outras, voltadas para o interior de si mesmas", como afirmou Alain Touraine na defesa de um novo olhar para estes tempos.

E, ao se voltar cada vez mais para o seu interior, vemos em ambos os poderes exemplos que demonstram ser prioritários os interesses internos, em detrimento do interesse público, externo. É como se os altos escalões desses poderes se guiassem pelas sombras na parede da Caverna de Platão.

Todos lembramos das notícias de que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux fez lobby com os advogados do Rio de Janeiro para transformar sua filha em desembargadora, copiando a prática de seu colega, ministro Marco Aurélio Mello. Assim como o caso de Clayton Camargo, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, com sua cruzada para fazer do filho um conselheiro do Tribunal de Contas. É o olhar cada vez mais voltado para si.

No entanto, há uma decisão ainda mais escandalosa do Poder Judiciário – e do Ministério Público – que solapa essas instituições. Ela envolve recursos anuais da ordem de R$ 1 bilhão e tem um impacto cultural muito negativo, pois envolve a percepção que temos sobre nós mesmos e sobre justiça, ética e respeito. Falo da concessão de auxílio-moradia aos juízes, desembargadores, promotores e procuradores, mesmo para aqueles que já têm moradia, mesmo para aqueles que moram e trabalham na mesma cidade. A definição de auxílio é "ação de prover alguém do necessário; ajuda; assistência". Ora, se alguém já reside em casa própria, não necessita de auxílio para morar. E eu garanto que o leitor não encontrará os recebedores dessa ajuda vivendo em casas do programa Minha Casa, Minha Vida.

Mas o que levaria o ministro Luiz Fux e, depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a legitimarem essa excrescência? O que os estimulou a fazer essa transferência de recursos públicos para bolsos privados com o álibi de que todos precisariam de "auxílio-moradia"?

É uma mal disfarçada forma de aumentar os salários, com a agravante de que sobre o auxílio-moradia não incide Imposto de Renda. Ou seja, fica tudo em bolso privado; nem a Receita Federal será beneficiada. Algo impensável para qualquer um dos mais de 50 milhões de trabalhadores formais do país. A menos que você seja juiz, desembargador, promotor ou procurador.

Essa medida é uma punhalada nas costas da ética e do desenvolvimento que almejamos para o país. Apunhala nossas esperanças de um Brasil mais justo, destrói o desejo de nos vermos livres da empulhação e desfoca a decência do poder público.

É difícil, reconheço, acreditar que homens e mulheres que sempre nos defenderam dos maus políticos, dos bandidos, dos corruptos sucumbiram. Sempre reputei a essas pessoas uma enorme carga de honestidade e seriedade. Mas receber auxílio-moradia tendo moradia é honesto? É sério? Como esses nobres senhores e senhoras julgariam quem pleiteasse isso, caso não fossem eles mesmos?

A meu ver, a sociedade brasileira recebeu um recado: o de que em novas instâncias do país também está imperando a ética da malandragem.

João Augusto Moliani é professor do Departamento de Comunicação e Expressão da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), especialista em projetos empresariais públicos e privados, linguista e pesquisador das áreas de cultura organizacional e comunicação pública.

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