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O golem e o coronavírus
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Quando a prática científica concentra as atenções das redações e dos editoriais dos principais meios de comunicação do país, a perspectiva da filosofia da ciência pode colaborar para o debate público e é mais que conveniente. A distância de 90 dias da primeira morte por coronavírus no Brasil (o primeiro caso foi noticiado no dia 23 de janeiro, em Minas Gerais, antes do carnaval) permite algumas reflexões que escapem do lugar-comum em que se tornaram os debates sobre a pandemia e sobre o papel da ciência no serviço à sociedade civil.

Com efeito, as abordagens sobre a Covid-19 nesse período limitam-se a descrever as discussões como um cabo de guerra entre um discurso pretensamente científico e sua negação. Tal polarização mais desinforma que favorece o conhecimento dos cidadãos sobre a pandemia e como podem proteger-se. A fim de que características ignoradas sobre as relações entre produção de ciência e sociedade civil saiam do escuro, importa um olhar menos estreito, necessita-se de uma visão multidisciplinar e também histórica sobre o assunto. E a filosofia da ciência pode, em alguma medida, oferecer esse olhar.

De fato, conhecer o passado recente da reflexão sobre a prática científica também pode ser prudente e é a primeira ação que se deve tomar para trazer luz a esse momento. Afinal, já diz o adágio latino: historia magistra est – a história é mestra. E negar as lições que a história oferece generosamente aos homens é colocar-se voluntariamente sob os riscos de repetir, por ignorância, os erros do passado.

Por essa razão, alguém que pretenda refletir sobre a prática científica em sociedade não pode ignorar a análise que Harry Collins e Trevor Pinch oferecem em seus livros. Com efeito, a imagem que os autores propõem em sua obra The Golem: what everyone should know about science (1993) é tão impactante que gerou uma série de estudos, que deslindaram o assunto em áreas específicas da ciência: o Golem e a tecnologia e o Golem e a medicina.

Naquela obra simplesmente indispensável para quem pretende entender o lugar do conhecimento científico na sociedade civil, os autores comparam a ciência ao personagem Golem, humanoide pertencente à mitologia judaica. O Golem é um ente criado por mãos humanas a partir da natureza e tem algo de aparentemente mágico em sua constituição. Permanentemente submetido ao homem e mais poderoso a cada dia, também é muito, muito desajeitado e perigoso. Precisa ser tutelado pelo homem, pois, em sua agitação e descontrole irrefletido, o Golem pode destruir seu criador por simples descuido e confusão. Essa, segundo os autores, é a melhor imagem do que é a ciência contemporânea, e – como se pode perceber – há algo de educativo nessa figura.

O tratamento dado ao caso Covid-19 nos meios de comunicação desconsidera esse elemento primário da relação entre conhecimento científico e sociedade civil: a prática científica depende diretamente do modo como os homens de ciência se relacionam com esse objeto poderoso, mas letal. A quem não conhece o tema, as análises cotidianas e os editoriais parecem tratar a ciência como algo independente da vida e das convicções do cientista. Tratam a ciência em terceira pessoa! Como se fosse possível ter um tratamento desinteressado e totalmente objetivo para com o conhecimento. A quem lê analistas ou vê reportagens nesses dias, tem-se a nítida impressão de que a ciência age sozinha, que seu itinerário é determinado e inelutável, que cabe aos homens apenas assistir a suas determinações e evitar as consequências.

Mas não é assim, absolutamente. A ciência nem é capaz de falar por si mesma. Apesar de óbvio, é preciso dizer que as interpretações baseadas em dados científicos não são científicas. São apenas interpretações. E por essa razão só precisam ser refletidas, com alguma inteligência e perspicácia, para ver se condizem com a realidade a que se referem. Como o Golem, a ciência precisa de seu criador para ter voz, para escolher opções, para escolher o que importa, para interpretar fatos. É claro que a ciência é poderosa, como o Golem, mas muito do seu poder vem do seu criador, que lhe empresta força ou que quer que esta tenha aparência de força.

Portanto, oferecer uma leitura da situação da pandemia como se um lado encarnasse a ciência, pura e simples, e um outro fosse absolutamente desprovido da razoabilidade, no melhor dos casos, testemunha desconhecimento do assunto ou, no pior, denota manipulação da ciência para fins distintos dela. Imaginar uma prática científica desinteressada, desde a última metade do século passado, chega a ser ingênuo, se não fosse ridículo.

É preciso lembrar a todo comentarista de ciência e aos cidadãos que são objeto de suas análises que a prática científica não acontece no limbo da história. O conhecimento científico nasce do dia a dia do laboratório (ou, ainda, em gabinetes de burocracias com ar condicionado), onde um homem de carne e osso, com contas para pagar e viagens agendadas, visões de mundo muito específicas, aspirações e desejos políticos, problemas e frustrações pessoais e familiares dará à luz o Golem.

E nesse processo doloroso, mas inevitável, a ciência vem à luz com o DNA de seus genitores. Nunca com a marca do desinteresse, mas com as digitais de seus pais. E em cada caso concreto desse parto científico, em cada uma das teorias desenvolvidas, em todas as determinações científicas, os protocolos e agendas propostas trazem os traços dos seus progenitores. A ciência – assim como o Golem –, se não tem o nariz do pai, terá os olhos da mãe. Desprovida de história é que a ciência nunca estará.

Robson de Oliveira é professor de Filosofia da PUC-RJ e diretor do CTSMART.

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