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Incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris.
Incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Fabien Barrau/AFP| Foto: AFP

Das margens e pontes do rio Sena, milhares de turistas e parisienses assistiram atônitos as chamas consumirem o campanário de Notre-Dame. Quando a torre mais alta veio abaixo, os gritos traziam um misto de sentimentos: alguns lamentavam pela destruição quase completa de um dos maiores exemplos da arte gótica, outros, entretanto, viram nesse mesmo evento o ápice da crise religiosa que consumiu a espiritualidade e a identidade do continente europeu.

Nas últimas décadas, o crescimento do multiculturalismo conduziu a sociedade francesa da laicização ao anticlericalismo, resultando em um abandono sistemático das tradições cristãs e dos valores ocidentais (uma espécie de nulidade incentivada pelo politicamente correto). Através desse discurso, abandonar a fé cristã traduziu-se como uma espécie de "rebeldia contra o patriarcado opressor" e a rejeição das tradições ocidentais passou a ser uma tentativa risível de alcançar o perdão por uma dívida histórica marcada por séculos de colonialismo.

Antes que Notre-Dame fosse consumida pelas chamas, muitos templos caíram diante dessa combinação fatal. A Igreja de Saint-Jacques d'Abbeville, por exemplo, construída entre 1868 e 1876 em estilo neogótico, foi demolida em 2013 após uma redução drástica no número de fiéis nas últimas décadas. O templo, praticamente abandonado, representava apenas um ônus para o poder público que preferiu demolir 140 anos de história em poucos dias.

O incêndio da Catedral de Notre-Dame não pode ser analisado isoladamente

Devido ao enorme valor dos terrenos que ocupam, igrejas centenárias vão, aos poucos, cedendo lugar para shoppings, estacionamentos, lojas e, em alguns casos, até para mesquitas. Este foi o caso de uma igreja luterana no bairro de Horn, em Hamburgo na Alemanha. O prédio foi dessacralizado em 2002 devido a falta de fiéis e comprado por Daniel Abdin,  diretor do Centro Islâmico de Al Nour.

Em pouco tempo, a indiferença diante da fé transformou-se em vandalismo e profanação em diversas partes da França. Talvez o caso mais emblemático desse novo contexto seja o incêndio ocorrido há pouco mais de um mês na igreja de Saint-Sulpice, em Paris. O templo, utilizado como cenário de filmagens de Código Da Vinci, ficou irreconhecível com portas, escadas e vitrais completamente destruídos pelas  chamas.

Dessa forma, o incêndio da Catedral de Notre-Dame não pode ser analisado isoladamente. Ele é fruto de um longo processo histórico de dessacralização, que remonta ao período da Revolução Francesa em 1789, quando o enorme templo gótico foi atacado e convertido em depósito de bebidas e seus sinos foram derretidos e transformados em canhões.

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A grandiosidade arquitetônica desses edifícios refletem o fervor da fé cristã de tempos passados e contrastam com o grau de abandono contemporâneo. Muito antes que esses prédios caíssem, o espírito e a fé que os edificaram foram demolidos por séculos de niilismo e racionalismo materialista. O estado lastimável da herança cristã em toda a Europa reacende o debate da identidade do continente diante de um cenário de forte imigração islâmica e templos cristãos abandonados.

O clima é de desolação não só para os parisienses mas para milhões de católicos ao redor do mundo, que assistiram inconsoláveis a catedral ser consumida pelas chamas do pragmatismo e da dessacralização.

Em dezembro de 2019, a arquidiocese de Paris completaria 857 anos sobrevivendo aos danos persecutórios da Revolução Francesa e aos danos colaterais de duas grandes guerras mundiais, mas sem passar incólume pela França multicultural de Macron e pelo materialismo racionalista que corrói a espiritualidade de toda a Europa.

Igor Guedes é bacharel (Ufop) e mestre em História (Ufjf).

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