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A solução para os problemas sociais e de violência no Congo e na Uganda, bem como no Brasil, não passa pela condenação exemplar de uns poucos infelizes

Na quarta-feira, o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado em 1998, lançou sua primeira decisão condenando Thomas Lubanga Dyilo, congolano, por graves crimes internacionais. Embora se possa acreditar na justeza da decisão – porque é possível crer que os crimes foram efetivamente cometidos e que, por isso, a sentença foi merecida – uma visão rasa da questão vem assolando a comunidade internacional que clama, de forma assustadoramente figadal, por cada vez mais condenações.

Dyilo era acusado de crimes de guerra na forma do alistamento forçado de crianças como soldados no exército das Forças Patrióticas para a Liberação do Congo. Encontrado em março de 2006, no Congo, desde então esperava sua sentença preso na cidade de Haia. Seu processo começou apenas em janeiro de 2009 e nesta semana o TPI, em uma decisão histórica, condenou o acusado (a pena será definida no futuro). Ainda cabe recurso.

A decisão representa a vitória da coesão internacional em torno de um ideal. Desde que o processo de massificação da informação transformou a violência em um fenômeno pop, acostumamo-nos a ver exércitos de esquálidos refugiados palmilhando ruas enlameadas de países do Terceiro Mundo fugindo da fome, da guerra e do genocídio. Tão logo as condições políticas do pós-Guerra Fria permitiram, a política atendeu aos nossos clamores e criou o palco onde seria julgada a nossa angústia: com o TPI, abria-se o caminho para o julgamento sério de casos como Dyilo. A reunião de tantos dialetos em uma língua franca para o combate aos crimes internacionais é comovente e inspiradora e, por isso, como símbolo de união universal, são necessários louros à decisão do TPI.

Se a decisão é uma vitória da justiça, todavia, é questão mais complexa. Em vários momentos o processo de Dyilo não respeitou consagrados direitos internacionais. A começar por sua longuíssima prisão processual (já dura 6 anos), passando pela produção de provas em violação às regras processuais, o processo foi conduzido por uma acusação preocupada mais com o show do que com a justiça: o promotor do caso é figura dada aos holofotes, diversas vezes criticado pelos juízes por confundir sua posição de acusador com a de star, buscando a condenação a qualquer custo. Chegou-se, inclusive, a se determinar a soltura do acusado, o que só não persistiu porque um recurso cassou a decisão de primeiro grau que o libertara. De fato, depois de anos e de milhões de dólares gastos no espetáculo do primeiro caso do TPI, como admitir que se fora longe demais?

Fato é que a condenação de Dyilo era inevitável por representar outro desejo humano universalmente comum: a vontade de vingança. Essa pretensão atende a recônditos interesses humanos de personalizar a culpa da maldade social em uma figura visível – de preferência, um ser humano – que, sacrificado, trará a paz social. Por isso é necessária a construção de um inimigo que precisa passar por um processo de execração pública que justifica qualquer excesso (como se de excessos fosse possível fazer justiça). Por isso é necessário odiar Dyilo, como é necessário odiar Joseph Kony, outro grande criminoso universal pop, também acusado pelo TPI por crimes contra crianças na Uganda (seu processo nem sequer começou) e protagonista de um filme que pede sua prisão e que circula na rede compartilhado aos milhões pela população mundial que acredita, assim, fazer "ativismo social".

É necessário que se esclareça: o Congo não é um país melhor porque Dyilo foi condenado. A Uganda não será um país mais justo se Kony for preso. A solução para os problemas sociais e de violência no Congo e na Uganda, bem como no Brasil, não passa pela condenação exemplar de uns poucos infelizes. Essa é uma ficção mais afeita à conveniente política de pão e circo porque satisfaz o interesse popular de ver gente condenada – o que é muito mais fácil do que efetivamente resolver os problemas globais.

Que se festeje a decisão é natural, já que a humanidade é dada à vingança por natureza. Que foi feita justiça pontual não se pode negar dada a gravidade dos crimes cometidos. Mas dizer-se que a justiça pode viver de tão escasso pão é acreditar que a humanidade sobrevive de ignorância e anda adiante pelo simples sacrifício de alguns bodes expiatórios capazes de esconder os reais problemas atrás de condenações simbólicas.

Rui Carlo Dissenha, doutorando em Direito Humanos na USP, é advogado e professor de Direito Penal e de Direitos Humanos.

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