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No documento Sacramentum Caritatis, divulgado recentemente pelo Vaticano, o Papa Bento XVI defende a volta do uso do latim nas missas católicas, o que já não era mais obrigatório desde os anos 60.

Embora essa posição do Papa possa ser só mais um reflexo de seu tradicionalismo, para nós, professores de latim e profissionais da linguagem, reabre um debate que está por trás da própria existência dos cursos dessa língua, dita morta.

Definimos língua morta como aquela que não tem mais falantes nativos, que não é mais adquirida naturalmente como as línguas que falamos hoje (o português, o turco, o japonês são, assim, línguas vivas ou naturais) e que, portanto, aprendemos para ler. No entanto, o latim dificilmente pode ser considerado uma língua morta do ponto de vista do seu legado. Um vastíssimo corpus de textos constitui uma língua extremamente importante para o Ocidente desde seus primeiros registros pré-literários de antes do século III a.C., passando pelo surgimento da literatura latina como apropriação da cultura e literatura gregas ao longo desse mesmo século, até chegar a um período milenar em que foi usada como "língua franca" no comércio, administração política e religiosa, erudição, filosofia, gramática, literatura e ciência. Muito disso mesmo após os falantes nativos do latim terem testemunhado a transformação de suas línguas, que foram se tornando o que hoje são as línguas neolatinas.

Assim, o nosso direito, gramática, filosofia, religião, literatura e até modelos políticos e sociais, em grande parte, se originam ou são transmitidos e reforçados por comunidades falantes dessa língua.

Não bastasse essa lista, muita gente crê que o estudo consistente do latim pode melhorar nossa memória, raciocínio lógico-matemático e até mesmo o português. Essas vantagens incríveis advindas do estudo do latim podem não passar de estratégias retóricas para justificar o seu ensino obrigatório, que, até décadas atrás, deveria causar dores de cabeça aos alunos, por falta de interesse, por metodologias demasiado ultrapassadas, ou por uma visão desnecessária e preconceituosa de que o latim é uma língua "difícil".

Contudo, se colocarmos de lado os supostos milagres que o latim pode oferecer, há todo um conjunto de benefícios que advém do seu estudo. Afinal, trata-se de uma língua como qualquer outra. As finalidades práticas podem não ser assim tão óbvias: se não tivermos um interesse objetivo como a leitura dos clássicos no original, ou, por exemplo, o trabalho com fontes historiográficas, filosóficas ou teológicas escritas em latim, pode parecer que sobram poucas razões prementes para que alguém vá estudar latim.

Por outro lado, não é de todo falso que o latim nos ajuda a "aprender português". Mas isso acontece com qualquer outra língua: a reflexão sobre outra língua nos ajuda a entender melhor os processos lingüísticos, gramaticais e históricos que tornam claros vários pontos de nossa relação com a nossa própria. Afinal, o contato com outra língua proporciona a passagem para um mundo diferente, para ver a realidade com outros olhos, como já dizia o prussiano Wilhelm von Humboldt. Já em Roma, Sílio Itálico dizia do poeta arcaico Ênio, um dos fundadores da literatura em Roma, que ele tinha três corações, porque era falante de latim, grego e osco.

Mesmo depois que o latim deixou de ser ensinado obrigatoriamente nas escolas, muitos centros de cultura clássica no Brasil ainda o mantêm bastante vivo, e o interesse (quem sabe, agora, genuíno) nessa língua parece crescer. O número de alunos que entram no curso de letras da UFPR para se habilitar em letras clássicas, por exemplo, cresce a cada ano, e hoje em dia quase se equipara aos números de alunos de algumas línguas modernas ofertadas pela instituição. Outro dado importante é que no Centro de Línguas da UFPR, a cada semestre, temos alunos da comunidade geral procurando não só o latim, mas também outras línguas que constituem nossa herança lingüística e cultural indo-européia, como o grego antigo e o sânscrito.

Rodrigo Tadeu Gonçalves é professor de Língua e Literatura Latina do Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas da UFPR.

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