
Ouça este conteúdo
Finalmente, a Suprema Corte Federal decretou o fim da controversa ADPF 635, conhecida popularmente como ADPF das Favelas ou a "carta branca" ao crime nas favelas. Após um ciclo de cinco anos, os onze guardiões da Constituição convergiram sobre a calamitosa questão da violência que aprisiona o Rio de Janeiro. A decisão unânime agora deposita nos ombros do governo estadual a hercúlea tarefa de reconquistar os territórios insidiosamente capturados pelas garras das milícias e das facções, com o Comando Vermelho à frente dessa sinistra hierarquia. A ordem judicial soa como um tardio despertar, um reconhecimento de que a "proteção" inicial se metamorfoseou em veneno para a própria sociedade.
A analogia para descrever a ascensão do crime é sombria: a liminar de Edson Fachin, concebida como um escudo protetor para os mais vulneráveis durante o auge da pandemia de Covid-19, ironicamente irrigou o terreno para a intensificação do crime organizado. A "mudinha" da ilegalidade, outrora hesitante, lançou raízes profundas, estendendo seus tentáculos por toda a parte. O que era um foco de atuação limitado se expandiu, ostentando agora poderio bélico e controle territorial sem precedentes. Essa "salvaguarda" legal da ADPF das Favelas, ao restringir a atuação policial nas comunidades, inadvertidamente abriu as porteiras para que as facções criminosas consolidassem seu domínio, erigindo um império de terror e subjugação que rivaliza com os piores momentos da história do estado, guardadas as devidas distinções temporais. A "proteção" se tornou o adubo para a metástase do crime.
O fim da liminar da ADPF das favelas representa um suspiro de alívio, mas marca apenas o prelúdio de uma longa e árdua jornada para a recuperação do controle territorial e a restauração da ordem no Rio de Janeiro
Durante o período em que a liminar da ADPF das Favelas lançou sua sombra, o Comando Vermelho e seus asseclas, juntamente com grupos rivais, teceram uma intrincada teia de dominação dentro das favelas. Erigiram-se muralhas visíveis e invisíveis nas entradas, demarcando territórios sob seu jugo, e toques de recolher silenciaram a vida noturna. Tribunais paralelos, com suas próprias leis brutais, ditaram o cotidiano dos moradores. A extorsão se tornou a moeda corrente, com "pedágios" cobrados sobre cada transação comercial. A livre circulação foi cerceada, barrando a entrada de serviços independentes. O próprio conceito de serviço essencial foi sequestrado, com o crime organizado fornecendo suas versões de gás, água, luz, internet e TV a cabo, a preços inflacionados e sob seu controle exclusivo. No palco das eleições, essa influência nefasta se manifestou na imposição de candidatos, na eliminação de vozes dissonantes e na celebração de pactos obscuros com figuras do poder público em todas as esferas, da polícia ao legislativo, da prefeitura ao governo estadual, contaminando até mesmo instituições como escolas e serviços básicos.
A intrincada batalha pela segurança no Rio de Janeiro se revela como uma guerra em três fronts interconectados: o bélico, o jurídico e o informacional. No campo de batalha físico, os números de baixas policiais ecoam os de conflitos armados, expondo uma realidade brutal que contrasta com a visão distante de teóricos e cortes. A arena jurídica, por sua vez, como mostra a ADPF das Favelas, é palco de um garantismo seletivo, que muitas vezes protege o infrator em detrimento da vítima, com decisões judiciais que parecem ignorar a urgência e a complexidade do trabalho policial nas ruas. A proibição do uso de aeronaves em operações, por exemplo, demonstra essa desconexão, negligenciando o papel crucial que o apoio aéreo pode ter na segurança tanto dos policiais quanto dos moradores. Finalmente, a guerra informacional é travada por vozes diversas, de ONGs a veículos de mídia, muitas vezes imbuídas de ideologias que obscurecem a realidade e negligenciam o sofrimento da maioria silenciosa nas favelas, reféns do poderio criminoso.
A restituição do poder de polícia ao governo estadual ocorre após um quinquênio de consolidação do crime e a poucos meses do pleito eleitoral. Cláudio Castro, com seus olhos voltados ao Senado, terá a delicada missão de indicar um sucessor, carregando o peso da segurança pública como prioridade máxima para os eleitores fluminenses e para todo o país. O cenário político se configura como um complexo jogo de xadrez, onde promessas de segurança serão moeda corrente, mas apenas o governo em exercício detém a prerrogativa da ação imediata. A pressão por resultados tangíveis se intensificará a cada dia, e a inação poderá ser interpretada como conivência, enquanto qualquer passo em falso, com eventuais vítimas civis, poderá ser explorado pela oposição como munição política.
O fim da liminar da ADPF das favelas representa um suspiro de alívio, mas marca apenas o prelúdio de uma longa e árdua jornada para a recuperação do controle territorial e a restauração da ordem no Rio de Janeiro. A intrincada teia de poder construída pelo crime organizado ao longo de cinco anos exige uma estratégia integrada e abrangente, que transcenda a mera atuação policial. É fundamental um esforço conjunto que envolva o sistema de justiça, as políticas sociais, a inteligência e a participação ativa da sociedade civil. A voz dos moradores das comunidades, sufocada pela violência, precisa ser ouvida e suas necessidades atendidas. A superação de visões ideológicas e a adoção de medidas pragmáticas e urgentes são imperativas para desmantelar as estruturas do crime e construir um futuro onde a segurança seja um direito, e não uma miragem distante.
Fernando Albuquerque Montenegro, coronel da reserva, analista militar e especialista em Forças Especiais.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



