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A insistência em apontar os desvios éticos da gestão do presidente Lula mostrou-se nula no "Brasil profundo"

Entre junho e setembro de 2005, a morte política do presidente Lula fora decretada. Era o auge dos noticiá­­rios que traziam à tona o escândalo do "Mensalão", um dos mais célebres episódios de corrupção da história do país. O então imaculado Partido dos Trabalhadores via sua imagem sendo corroída por manifestações grotescas de malversação da máquina pública, e a alcunha de "partido da ética" não poderia mais ser propagandeada, sob o risco de cabotinagem.

Enquanto a oposição ria e esperava o presidente "sangrar" para abatê-lo nas urnas, um dos fenômenos políticos mais interessantes da história recente do país era forjado em silêncio. Pouco mais de um ano depois, em 29 de outubro de 2006, Lula emergia das urnas com esmagadores 61% dos votos válidos, contra 39% do então candidato Geraldo Alckmin, do PSDB.

O fenômeno ao qual me refiro diz respeito à radical mudança na base de sustentação eleitoral do lulismo. O político criado nas bases do movimento sindical emprestava à esquerda algo que ela sempre almejou, mas nunca teve: povo. Importante: não ignoro que "povo" seja um conceito cuja definição se mostra nebulosa. Tomo-o aqui como a camada da população mais dependente de ações diretas do Estado.

Lula repetia em 2006 o mesmo placar que o alçou ao poder em 2002, quando derrotou o candidato José Serra. Contudo, a repetição dos 61% a 39% maquiam uma mudança substancial. Se em 2002 os eleitores mais escolarizados dos centros urbanos levaram o ex-metalúrgico à Presidência, em 2006 foram os brasileiros com menos recursos econômicos e escolaridade, alojados nos municípios com os menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), que asseguraram a continuidade do lulismo.

Curiosamente, tratava-se da mesma base demográfica que garantiu a eleição do ex-presidente Fernando Collor e, mais atrás, contribuiu para garantir vida longa ao regime militar. O grupo que era o verdadeiro calcanhar de Aquiles dos candidatos da esquerda (diga-se Lula), oriundo dos grotões tidos pelos progressistas como demasiadamente "conservadores" e fiéis a um coronelismo histórico, agora manifestava um inédito apoio àquele a quem sempre repudiaram.

As explicações para essas transformações variam, mas existem certos consensos, como o papel desempenhado pelo programas sociais (sobretudo o Bolsa Família) promovidos pelo governo federal. Inegavelmente, trouxeram mudanças significativas para milhões de famílias daquelas regiões marcadas pelo abandono. A insistência em apontar os desvios éticos da gestão do presidente Lula mostrava-se nula no "Brasil profundo". O presidente, sagazmente, soube construir o discurso – esquizofrênico, é verdade – que seria levado a cabo com maior intensidade a partir de então: as críticas a seu governo não passavam de manifestações de uma elite mal amada, "que não se conforma em ver um operário na Presidência". Colou.

Ao término de seu primeiro governo, Lula havia decepcionado parte da esquerda ao conduzir uma política que tentava equalizar o problema da pobreza e da desigualdade sem rupturas estruturais – exatamente o oposto do que seu partido sempre pregou enquanto esteve na oposição. Mas entre ouvir a voz rouca das esquerdas e vencer eleições, Lula optou pela segunda. E tem se mostrado um especialista no assunto.

Veio 2010 e, novamente, a nova base de apoio do lulismo mostrou-se determinante, para desespero de seus adversários, incapazes de dialogar com essa camada da população. Isso significa a perpetuação do lulismo no poder? O erro do lulismo, agora encarnado por Dilma Rousseff, pode ser acreditar que tal eleitorado passou a ser uma espécie de patrimônio exclusivo, um cliente cativo que o acompanhará aonde quer que vá. A despeito das opiniões que asseguram que há uma afinidade quase mitológica entre Lula e essa camada da população, talvez essa relação seja mais óbvia e racional do que se supõe: os que ora estão com Lula (e Dilma) retribuem, por meio do voto, um favor que julgam ter obtido.

Contudo, o que hoje é visto como favor virou nada mais do que mera obrigação e imediatamente novas e complexas demandas exigem entrada na agenda política. A sustentação dessa base de apoio só será possível se Dilma Rousseff for capaz de identificar e dar uma resposta satisfatória às exigências que inevitavelmente surgirão. Apostar na onipotência de um "mito fundador" é de uma ingenuidade grosseira. E Lula pode ser tudo, menos ingênuo. Ele sabe, melhor do que ninguém, que o povo não hesitaria em cometer suas pequenas heresias diante de uma tentação vantajosa. O povo, esse ser sociologicamente indefinível, continuará a se fazer ouvir. Resta saber qual será o acorde do seu novo grito e quem será capaz de captá-lo.

Elton Frederick é especialista em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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