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O ano da política externa brasileira terminou com formidáveis perplexidades. Como ator global instado a atuar em novas fronteiras, o Brasil ganhou projeção e protagonismo em agenda exterior não isenta de polêmica e de ambiguidade. Para o Mercosul, em particular, seu eminente alargamento com a Venezuela foi identificado em muitos setores como sobrepasso desnecessário e imprudente. E não faltaram a propósito os vaticínios pesarosos das Cassandras de sempre: acabou a integração latino-americana!

O enfrentamento crítico ao possível novo parceiro padece no entanto de vícios tanto de desmedida precaução quanto de desnecessário preconceito. Como bloco econômico, a essência do Mercosul é a liberdade comercial, a busca programática da livre circulação de bens e de serviços, com a desconstrução paulatina de ancestrais amarras protecionistas e de intervencionismo estatal. Ainda que o acordo histórico que institui o bloco pareça ter sido pouco ou nada lido, ninguém poderá alterar, mesmo com gritos ou insultos, o artigo primeiro do Tratado de Assunção de 1991. Nele estão apregoadas as liberdades essenciais do livre comércio, assentes em conquistas inegociáveis da civilização, como democracia e segurança jurídica. Portanto essa é a música que toca e nada há por temer no que concerne à manutenção da identidade da instituição, ainda que alguém venha mal vestido para o baile. Mesmo quando e se o Congresso paraguaio vier a decidir pela autorização faltante, para que o Mercosul vá além de seu leito histórico, a incluir a Venezuela com seus dilemas e fantasmas, nada poderá mudar a imanência capitalista do comércio internacional.

O verdadeiro problema que o Mercosul deve enfrentar com urgência urgentíssima, deliciosa expressão do vocabulário legislativo, diz respeito ao impasse do imobilismo. De fato, deixou-se de avançar, e nada de importante no plano institucional tem acontecido. Claro que sem vida própria por natureza, blocos econômicos não refletem senão a realidade e o querer de seus Estados partes, como condomínio de vontades e não como instância superior a dar ordens e a impor comportamentos. Nesse sentido, a integração regional vem refletindo e padecendo com as divergências imponderáveis intra e entre Estados membros, sem saber superá-las com maturidade e grandeza.

Como novidade, o propalado parlamento comum, por notórias questões de timing político, é iniciativa inoportuna, a gerar tensões e desentendimentos e a desgastar a imagem pragmática e despojada que a integração possui. Ainda, na agenda entravada do Mercosul, o aperfeiçoamento da união aduaneira não ocorre. Vale dizer, a cobrança de impostos concertados de comércio internacional segue letra morta, com sua negociação sufocada por questiúnculas, como o desentendimento dos governos argentino e uruguaio, com suas papeleiras e seus papelões. A agravar o marasmo, incide ainda a má vontade paraguaia, ancorada de forma rígida no lago de Itaipu e de seus queixumes paralelos. Como se vê, detentor de cerca de 70% do PIB regional, o Brasil da hora, enfant gâté do mercado internacional, não tem sido eficiente em dinamizar a sub-região e destravar o Mercosul. Ao contrário, descobre-se enredado no varejo vicioso da política latino-americana na qual ainda não caiu o muro de Berlim.

Lidar com as assimetrias, o que significa na prática atuar com mais generosidade na abertura de seu mercado aos vizinhos, tem sido o grande pleito dos países mercosulinos em relação ao Brasil. Porém, isso deve-se dar em quadro institucional de evolucão do bloco, e não como atitude isolada de bondade pontual, na dicção do velho clientelismo da política interna. Após a Copa do Mundo, mas ainda bem antes da eleição presidencial brasileira, no início do segundo semestre, o Brasil deverá assumir a presidência pro-tempore do bloco. Com a escalada de problemas do imediato porvir, é aconselhável que os candidatos a candidato ao Palácio do Planalto aviem desde já posições claras acerca da abrangência e do significado do Mercosul que pretendem. A integração regional é uma variável de política externa, passível de mudanças a qualquer tempo. O que não se pode mudar é a geografia.

Jorge Fontoura, doutor em direito, é professor titular do Instituto Rio Branco e membro-consultor da Comissão de Relações Exteriores do Conselho Federal da OAB.

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