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O novo normal
| Foto: Thapcom

É difícil resumir o que se passa com uma parcela do povo brasileiro. Em poucos dias, o sentimento de indiferença foi substituído por uma confiança cega nos bons propósitos dos governantes. E o amor pela liberdade confundiu-se com a defesa da censura e da violência estatais.

Estamos presenciando uma mudança radical em nossas vidas. Mudança esta que não queremos, não pedimos e não autorizamos; todavia, caminhamos rapidamente para um mundo incerto e perigoso.

De repente, passamos a achar natural pedir autorização para sair de casa – e ser multado, preso ou violentado em caso de descumprimento dos decretos. Aceitamos que atividade essencial é aquela que o governo diz que é, sem nos importar que, para o homem comum, trabalho algum é dispensável quando o que está em jogo é a sobrevivência.

Em que lugar e época uma pessoa precisou pedir permissão para exercer direitos que lhe são naturais? O que explica esta situação, em que iluminados se sentem com poder suficiente para proibir alguém de sair de casa para encontrar um parente, de cumprimentar um amigo na rua com abraço e aperto de mãos, de tomar um café na padaria, de fazer compras no centro da cidade?

Juridicamente, nada ampara certos decretos emitidos por estados e municípios e decisões judiciais que passaram a ignorar que os direitos fundamentais estão em plena vigência, que as leis federais são imperativas e que os decretos não poderiam extrapolar os limites da lei. Estamos presenciando uma situação em que, a pretexto de proteger o cidadão, atos normativos e decisões de juízes estão usurpando a Constituição e impedindo o exercício de direitos inerentes à própria condição humana – tal como ocorreu na Alemanha, em 1933, em que se permitiu que as leis do Reich pudessem desafiar a Constituição Alemã (que seguiu em vigor). A história nos mostra que momentos excepcionais, mais do que tempos de paz, exigem confiança e aplicação reta da Carta Maior.

Ficamos estarrecidos com um simples palavrão, apavorados com a opinião de especialistas e, quando alguém faz acusação em público, sem pestanejar condenamos o acusado (que, curiosamente, passa a ter o ônus de provar que é inocente).

O estado de histeria paralisou o coração e a razão de alguns brasileiros, que se veem encharcados de notícias trágicas todos os segundos. Todos opinam sobre tudo, têm certeza a respeito de temas delicados, estão inquietos e desesperados. O medo tomou conta – e é esse estado de espírito que mais contribui para tendências autoritárias.

É justamente quando as pessoas estão a um passo de perder a razão e o equilíbrio emocional que uma minoria organizada tira proveito. Afinal, nada importa mais a uma multidão em pânico do que um salvador pronunciando palavras de alento em rede nacional, não é mesmo?

Reflita sobre o efeito psicológico devastador que é sair de casa e saber que um vizinho está pronto para denunciá-lo aos fiscais pelo simples fato de você tentar trabalhar. E pense também nas acusações (infundadas e repugnantes em todos os sentidos – morais e éticos, inclusive) de que a culpa da atual situação é de quem não tem condições de ficar em casa.

E nem pense em ir à igreja rezar e conversar com Deus para buscar conforto espiritual. Isto atrapalha os desígnios autoritários. O medo e a impaciência devem ser ininterruptos e permanentes.

Mas, se é verdade (e é mesmo) que a coragem não é o oposto do medo, e sim o senso de um dever a cumprir apesar do risco real de que algo pior possa acontecer, será que podemos aventar a hipótese de que sofremos apenas de um medo momentâneo e passageiro? Ou: superada esta fase, será que seguiremos normalmente com a nossa vida na certeza de que nada pior ocorrerá daqui para a frente? Definitivamente, não.

O medo não é a causa do mal presente. É uma consequência visível, a ponta do iceberg que esconde algo muito mais profundo: a nossa completa alienação da realidade – que traz consigo o nosso (triste) desprezo pela natureza humana.

Não discutimos o mundo tal como ele se nos apresenta, mas como nós gostaríamos que ele fosse. E esse mundo pensado, por não existir, significa apenas uma ideia, um desejo de como a vida poderia ser. Isso explica por que boa parte da população dá valor a discursos otimistas, que provocam nada mais que boas sensações, enquanto apenas um grupo reduzido de pessoas consegue, bravamente, buscar algum sentido à vida, um propósito transcendente que de alguma maneira possa aliviar o sofrimento.

Consequência disto é que encontramos divagações utópicas em todos os cantos e níveis sociais. Formamos nossa opinião e depois buscamos os argumentos naquilo que chamamos de ciência. Não lemos, não somos capazes de interpretar um texto e nem sequer compreendemos a nossa própria linguagem.

Convenhamos: nesta situação, não admira que alguns tenham trocado (ou negociado) a vida, a liberdade e a própria dignidade por lives em casa, ioga na sala e disseminação gratuita da propaganda mundial “#ficaemcasa”.

A título de curiosidade, o filósofo Eric Voegelin já dizia que a ascensão de Hitler só foi possível porque boa parte dos alemães à época (década de 1930) era extraordinariamente estúpida e se encontrava em situação de apodrecimento intelectual e ético; e nos ensina que os nazistas, para justificar suas maluquices, se utilizaram da ciência (a seleção natural de Darwin, por exemplo, ajudou na tese da raça superior ariana) e da literatura (renascentista e moderna), aliadas com discurso público e propaganda que prometiam salvar o país do caos social e econômico.

Se o filósofo estiver certo, temos uma noção do que pode resultar da combinação de estupidez e alienação do povo com projeto de dominação e poder. A encruzilhada que estamos exige uma iniciativa: podemos lutar o bom combate ou cruzar os braços.

Por ora, apenas uma coisa é certa: se a estupidez não é, em si mesma, criminosa, ela serviu bem ao propósito de desumanizar o povo e mostrar a uma minoria autoritária que bastam simples atos para tolher nossa liberdade do dia para a noite – ainda que paulatinamente.

Augusto Bruno Mandelli é juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, pós-graduado em Direito Tributário e mestrando em Direito da Saúde.

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