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O Papa não tem o direito de mudar nada do que a Igreja ensina. Ele tem menos poder sobre a Igreja que um prefeito sobre a cidade

É realmente impressionante como se procura chifre em cabeça de cavalo. Um caso emblemático é a recente declaração, numa entrevista, do filósofo Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI.

Na visão católica da sexualidade, o ato sexual é algo que só é ordenado (ou seja, só faz sentido, só é bom) quando é aberto para a reprodução e o casal se comprometeu a ficar junto o resto da vida, para ter filhos e criá-los. Ponto. Sexo fora do casamento é errado, sexo homossexual é errado, sexo com cabritos, com crianças ou solitário é errado. Há alguns mais ou menos errados, nessa visão, mas é como discutir se roubar um banco é mais ou menos errado que roubar dos cofres públicos: um debate importante, mas que não toca no essencial.

Dentro dessa visão, é evidente que não se poderia aceitar o modo como se pretende combater a aids hoje em dia, distribuindo camisinhas e pregando que é o uso da camisinha (não o compromisso, a abertura para a vida etc.) o que faz com que o sexo seja moralmente aceitável. A visão católica e a visão do século são mutua­­mente incompatíveis.

Para confundir ainda mais a cabeça de muita gente, cabe lembrar também que o Papa simplesmente não tem o direito de mudar nada do que a Igreja ensina. Ele tem menos poder sobre a Igreja que um prefeito sobre a cidade que governa porque a sua função é de preservar, não de dirigir. Na visão católica, a natureza humana não muda e assim não é possível que algum ato seja hoje bom e amanhã se torne mau, ou vice-versa.

É, contudo, a visão católica o ponto de partida, o único quadro de referência para entender as declarações em que a imprensa ficou procurando pelo em ovo, excitadíssima por ter encontrado a palavra "camisinha" nas declarações em questão, sem perceber que nem seria possível haver qualquer "mudança de doutrina" nem seria esse o lugar em que se pudesse encontrar qualquer declaração mais importante. Afinal, quem falou foi só um teólogo e filósofo católico.

O fato de ele estar ocupando atualmente o posto de Papa é relativamente irrelevante, por uma questão simples: ele não estava falando como Papa. Para que suas palavras tivessem qualquer peso, exigissem qualquer obediência da parte dos fiéis ou mesmo pudessem sinalizar qualquer indício de definição moral, seria necessário um pronunciamento solene, feito por escrito e declarando haver a intenção de definir algo. Fora dessas condições, trata-se de um bate-papo de um teólogo alemão com um entrevistador, e só.

E, dentro desta visão católica tão alheia ao modo de pensar de quem vive de explorar novidades, o que disse, afinal, Joseph Ratzinger?

Simples: ele disse que quando alguém está completamente errado, vivendo uma situação insustentável, em um modo de vida completamente contrário a tudo o que a moral católica ensina, a pessoa continua sendo chamada a melhorar, continua tendo a capacidade de procurar elevar-se acima do estado lastimável em que está. Para um garoto de programa portador de uma doença mortal, usar a camisinha poderia parecer ser um primeiro passo em um longo caminho rumo à recuperação.

O ato do garoto de programa continuaria sendo completamente errado: seria a diferença entre assaltar um banco com balas de festim no revólver e com balas de verdade. O uso da camisinha não faria com que fosse moral o ato do garoto de programa, nem haveria qualquer caso em que este uso fosse correto. Muito menos seria a camisinha, como prega a sociedade hoje, algo que faz de um ato sexual desordenado algo moralmente aceitável.

Resumindo, as lições são três:

1 – Não há nem poderia haver mudança alguma no ensino de uma instituição cujo objetivo é preservar o que sempre foi ensinado por ela, não mudar de acordo com o vento;

2 – Um bate-papo informal de um membro da hierarquia eclesiástica, do Papa ao menor dos coroinhas, serve apenas para se ter ideia do que pensa uma pessoa, não para procurar "mudanças de doutrina", por mais que a palavra "camisinha" faça salivar os novidadeiros;

3 – O Papa continua acreditando na capacidade dos seres humanos de se levantar do fundo do poço e sabe que isso é um processo gradual. Para um assaltante, um primeiro passo pode ser não matar a sua vítima. Para um garoto de programa, também.

Carlos Ramalhete é professor e filósofo.

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