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Abraham Lincoln, exemplo de presidente forte.
Abraham Lincoln, exemplo de presidente forte.| Foto: Alexander Gardner/Domínio Público

O ano é 1781. No auge da Guerra de Independência, o governo de Maryland submete ao Congresso Continental sua ratificação dos Artigos da Confederação. Tem início a vigência formal deste documento, que é considerado uma proto-Constituição americana. Em sua luta contra o império britânico, as treze colônias seriam mais fortes unidas, lutando conjuntamente e de forma coordenada.

Por se tratar ainda de uma confederação, o documento era tido como uma espécie de tratado internacional, por meio do qual os aderentes concediam parte de sua autonomia, sem abrir mão de sua reivindicada soberania. O nome Estados Unidos da América surge aí – e o uso do termo “Estados” revela como as tais (ex-)colônias já se viam como entes soberanos.

Os principais propósitos do “tratado” eram afirmar a soberania dos novos “Estados”; promover defesa mútua contra a ameaça externa; e a livre circulação de pessoas pelo território (uma mistura de Otan e União Europeia dos tempos atuais).

Esse documento vigorou por pouco tempo. Em 1787, foi substituído pela Constituição americana (ratificada em 1788). Igualmente enxuta, fora promulgada com apenas sete artigos (muito embora fossem divididos em diversas seções).

A Constituição inovou em diversos aspectos. Em primeiro lugar, os Estados abdicaram de sua soberania em favor da União; e com base nas teorias iluministas em voga, sobretudo a de Montesquieu, instituiu-se um governo federal, dividido em três Poderes principais (Legislativo, Executivo e Judiciário).

Nos termos do tratado anterior, existia apenas um Congresso Continental, uma espécie de Poder Legislativo com representantes de cada um dos Estados recém-formados. Mas não havia qualquer Executivo ou Judiciário que pudessem fazer cumprir as deliberações emanadas daquele órgão. Entre 1781 e 1787 havia, formalmente, um país chamado Estados Unidos da América (cuja independência fora reconhecida em 1783 pelos ingleses), mas não havia um Presidente dos Estados Unidos.

No presidencialismo de coalizão, o potencial para o fisiologismo e a corrupção é elevado ao grau máximo. No parlamentarismo, os agentes são obrigados a se manter minimamente coerentes em suas alianças e votos.

Isso gerou muitos problemas, tendo George Washington nomeado o maior deles: a dificuldade de arrecadação. A falta de enforcement das diretrizes do Congresso Continental levava os Estados simplesmente a não contribuírem financeiramente para a manutenção da União.

Com base na teoria montesquiana, criou-se, a partir da Constituição, um Poder Executivo totalmente apartado do Legislativo. Desprezou-se, assim, a longa experiência inglesa de governo como uma longa manus do Parlamento. Tal rompimento com a tradição é compreensível, dadas as tensões recentemente vividas entre os dois países. Não havia “clima político” (essa expressão tão apreciada no Brasil) para preservar instituições inglesas – entre elas, o parlamentarismo.

Poucos anos após a independência americana, começam as revoluções no sul do continente. Entre 1809 e 1865, praticamente todas as ex-colônias espanholas se libertaram, à exceção de Cuba e Porto Rico. A despeito dos esforços de Simón Bolívar e sua Grã-Colômbia, não foi possível uma unificação das ex-colônias como ocorrera no norte. O império espanhol fragmentou-se em diversos países.

A tendência, nesses novos países nascentes, é a adoção da Constituição americana como modelo de organização pós-revolucionária – ao menos quanto ao presidencialismo. Esse sistema parecia refletir adequadamente o mantra de separação de Poderes – ao contrário da monarquia constitucional, limitada pelo parlamento, modelo que se desenvolvia na Europa.

A notável exceção é o Brasil. Em 1822 tornamo-nos independentes, mas não de forma revolucionária. Nossa primeira Constituição de 1824 preservava, quase integralmente, o status quo então vigente: o absolutismo real importado diretamente de Portugal em 1808. Por mais que trouxesse algum embasamento teórico supostamente constitucionalista – por exemplo, a teoria de Benjamin Constant sobre o Poder Moderador –, na prática o monarca brasileiro tinha poderes para “reinar E governar” (ao contrário das monarquias constitucionais da Europa, nas quais os reis reduziam suas intervenções na política).

O Brasil só viria a se tornar República, como seus vizinhos hispanos, em 1891 – quase um século de atraso. E então passaríamos a, como eles, copiar o modelo constitucional americano – unicamente no que dizia respeito ao sistema de governo, de caráter presidencialista.

Nenhuma das ex-colônias ibéricas importou o modelo americano como um todo. Se o fizessem, talvez o caráter presidencialista não tivesse surtido tantos efeitos deletérios. Apesar do presidencialismo, a Constituição americana, de seu lado, tem o mérito da descentralização de competências para os entes subnacionais – o federalismo. No sul do continente, por mais que as Constituições se manifestem federais, são, na expressão mais atual, transfederais: concentram a maior parte das competências no ente nacional (na “União”, como se “união” de fato fosse). Enquanto o chefe do Executivo nos Estados Unidos tem seus poderes limitados pelas competências estaduais, na América Latina os chefes do Executivo têm poderes totais – vige o chamado presidencialismo “imperial”.

Outra distinção considerável é o sistema eleitoral, que pode ser do tipo proporcional ou majoritário. O primeiro, segundo a “Lei de Duverger”, é tendente à formação de múltiplos partidos, enquanto o segundo tende ao bipartidarismo. O pluripartidarismo é particularmente disfuncional quando associado ao presidencialismo, formando o sistema que Sérgio Abranches cunhou “presidencialismo de coalizão”. Como o próprio autor demonstrara em 1988, coalizões constituem a normalidade nos sistemas parlamentaristas, em que raramente algum partido obtém, sozinho, uma maioria governista.

No presidencialismo de coalizão, todavia, como aponta a maioria dos autores que tratam do tema (por exemplo, Juan Linz, Valenzuela e Rose-Ackerman), o relacionamento entre o partido do governo (muitas vezes minoritário no parlamento) e sua base de apoio é quase sempre do tipo oportunista, clientelista. Enquanto no parlamentarismo a negociação para a formação do governo envolve questões programáticas e a troca de votos em projetos de lei de interesse dos partidos coligados, no presidencialismo pluripartidário a multiplicidade de lideranças permite uma negociação do tipo “acordo de adesão”, que pode envolver simplesmente o fornecimento de verbas e rendas públicas (como principal exemplo, as tais emendas parlamentares).

Nos EUA existe presidencialismo, mas não há coalizão: é do tipo bipartidário, o que significa que o chefe do Executivo dispõe de uma base de apoio mais sólida, fiel e, por isso, menos custosa. Além de ter menos chances de enfrentar crises de governabilidade – como as que se repetem na América Latina, que frequentemente geram impasses só resolvidos com sucessivas revoluções e golpes de Estado –, o governante terá menos custos políticos e fiscais para formar e manter sua base aliada. Ou seja, menos trocas de favores, privilégios e rendas públicas são necessários para que ele consiga aprovar suas leis.

Outro fator destacado pela doutrina é a falta de flexibilidade dos regimes presidencialistas. Uma crise de popularidade ou legitimidade de um governante (que se envolve em corrupção, por exemplo) só pode ser resolvida institucionalmente por meio do processo de impeachment – um processo custoso, para não dizer, por vezes, traumático. A dificuldade em promover sua substituição obriga o país a permanecer por todo o período do mandato sob uma crise de governabilidade – cujos atritos podem agravar uma eventual crise econômica, com um Congresso que literalmente sabota o Executivo, agindo diretamente contra os interesses da sociedade na esperança de “derrubar” o governo aumentando ainda mais a crise e a insatisfação.

Esses impasses são os principais problemas apontados pela literatura. Como já apontado, crises de governabilidade, se não resolvidas rapidamente, podem levar a crises institucionais. O fato de o chefe do Executivo possuir mandatos fixos, sem a possibilidade de sofrer um voto de desconfiança do Parlamento, torna o presidencialismo engessado demais para resolver essas crises de forma mais suave. O parlamentarismo, por outro lado, dispõe de maior maleabilidade, com instrumentos capazes de afastar rapidamente um governante que claramente não dispõe de condições de governar.

O argumento mais frequentemente oposto ao parlamentarismo no Brasil é “com esse Congresso que aí está, não dá”. Obviamente nenhum sistema político é perfeito. Eles apresentam diferentes incentivos para agentes políticos atuarem segundo seus próprios interesses (que é, geralmente, a reeleição); quanto mais perversos os incentivos, mais perversamente aqueles atuarão. No presidencialismo de coalizão, o potencial para o fisiologismo e a corrupção é elevado ao grau máximo. No parlamentarismo, os agentes são obrigados a se manter minimamente coerentes em suas alianças e votos – visto que a formação de coalizões se dá de baixo para cima (bottom-up) e não de cima para baixo (top-down) – como um presidente-imperador que leiloa cargos e benefícios. Além disso, o parlamentarismo, ainda que não seja imune, é mais avesso à ocorrência de golpes e ditaduras, justamente porque consegue evitar que crises políticas escalem até o ponto de causar rupturas.

Aerton Zambelli é Auditor Federal de Finanças e Controle da CGU, bacharel em Direito pela UFMG e especialista em Controle, Detecção e Repressão a Desvios de Recursos Públicos pela UFLA. Cursa o mestrado em Direito Internacional na Must University.

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