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Graças à imprensa, a sociedade brasileira foi informada neste início de ano que o Ministério das Relações Exteriores concedeu, no apagar das luzes do governo anterior, passaportes diplomáticos a filhos e netos do então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Justiça seja feita, não foram eles os únicos a contar com a benevolência do Itamaraty: inúmeros familiares de parlamentares também foram agraciados com passaportes diplomáticos, que lhes permite fazer turismo sem enfrentar dificuldades como filas e obtenção de vistos.

Diante da esperada reação da sociedade, iniciada pela Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério das Relações Exteriores anunciou que reformulará as regras que disciplinam a concessão de passaportes diplomáticos, de modo a evitar novos abusos. O problema, contudo, não reside na atual legislação que trata do assunto, mas sim no modo pelo qual ela vinha sendo aplicada pelo Itamaraty, que aparentemente se rendeu aos apelos políticos, deixando de lado o profissionalismo que sempre marcou a sua atuação.

Com efeito, o Decreto n.º 5.978/2006 indica claramente as autoridades que podem receber passaporte diplomático: presidente da República e seu vice, ex-presidentes, ministros de Estado, governadores, membros do Congresso Nacional e dos Tribunais Superiores, o procurador-geral da República e os subprocuradores-gerais, além, é claro, dos funcionários do corpo diplomático brasileiro. Os cônjuges e dependentes das autoridades contempladas pela norma também podem receber o passaporte diplomático, a critério do Itamaraty, que considera como dependentes os filhos inválidos ou menores de 21 anos ou, ainda, se estudantes, os menores de 24 anos.

Além do extenso rol de autoridades que têm direito ao passaporte diplomático, o decreto ainda permite ao ministro das Relações Exteriores concedê-lo às pessoas que "devam portá-lo em função do interesse do país", dispositivo que foi invocado pelo então chanceler Celso Amorim para agraciar os filhos e netos do ex-presidente da República com o tão desejado passaporte vermelho.

Não é preciso alterar a atual legislação para evitar abusos na concessão de passaportes diplomáticos, bastando aplicá-la com razoabilidade, parâmetro jurídico que serve de limite à atuação discricionária dos agentes públicos. É bem verdade que o Decreto n.º 5.978/2006 concedeu amplíssima liberdade ao ministro das Relações Exteriores, permitindo-lhe a concessão de passaporte diplomático a qualquer pessoa que dele precise "em função do interesse do país". E é natural que seja assim, pois podem surgir situações em que o interesse público efetivamente demande a concessão do documento a pessoas que não foram expressamente indicadas no decreto. Foi para atender a tais situações que se outorgou ampla liberdade de decisão ao ministro das Relações Exteriores.

Mas a discricionariedade outorgada aos agentes estatais não pode ser tida como um cheque em branco, para utilizar expressão corrente no direito administrativo brasileiro, não se admitindo que seja ela exercida de modo arbitrário e desarrazoado. Há limites que devem ser observados, sendo o mais óbvio deles o interesse público, para cujo atendimento foi concedida liberdade de escolha à autoridade pública, e não para que ela atenda a algum capricho. No caso dos passaportes diplomáticos, o limite é claro: eles podem ser concedidos às pessoas que "devam portá-lo em função do interesse do país", não sendo o caso, parece evidente, dos filhos e netos de ex-presidente da República.

Rafael Munhoz de Mello, advogado, é mestre em Direito do Estado (PUC/SP) e membro do Conselho Seccional da OAB/PR

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