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Em junho de 2012, foi publicada a Lei Geral da Copa, que estabeleceu alguns privilégios para a Fifa. Os que mais chamaram a atenção – e geraram maiores debates – foram a imunidade tributária, a isenção de custas judiciais, a existência de tribunais especiais, a liberação de bebidas alcoólicas nos estádios, a limitação ao livre comércio num raio de 2 km dos estádios (zona exclusiva da Fifa); o prêmio em dinheiro (R$ 100 mil) aos jogadores das seleções de 1958, 1962 e 1970; a alteração do calendário escolar e a supressão da meia-entrada.

Logo, não são poucas as discussões jurídicas. Seriam constitucionais tais previsões? Elas implicariam agressão à soberania nacional? Muito embora o Brasil tenha livremente pedido à Fifa para realizar a Copa e, assim, aderido ao seu estatuto, fato é que a solução não é assim tão simples. Tanto isso é verdade que tramita no STF uma ação de inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria-Geral da República (a ADI 4976, cujo relator é o ministro Ricardo Lewandowski). Lá, são discutidos alguns dos dispositivos da Lei da Copa e sua obediência (ou não) à Constituição brasileira.

Mas por que escrever a respeito desse assunto, mais de um ano depois da lei? Ocorre que, nessas últimas semanas, outro fato fez com que as discussões a propósito da soberania do Estado brasileiro retornassem à pauta. Muito embora não aparente, o tema é bastante mais sério que o torneio de futebol. Trata-se do programa federal denominado Mais Médicos.

Por que o problema é mais delicado? Devido ao fato de que, ao que parece e pelo que foi divulgado, a vinda de médicos estrangeiros pode trazer consigo potenciais violações a direitos fundamentais da Constituição brasileira. Isto é, não se trata apenas da regulamentação de evento esportivo e da criação de privilégios aos seus promotores, mas da supressão de direitos universalmente garantidos.

Afinal, vem-se divulgando que o pagamento do salário não será feito da mesma forma para todos os médicos estrangeiros. Alguns deles terão seus vencimentos entregues a uma agência internacional, que os repassará ao Estado de origem, o qual entregará o salário com um desconto (cujo porcentual não é revelado). Mais: anuncia-se que esses mesmos médicos estariam impedidos de adotar o Brasil como pátria e de recorrer à Justiça do Trabalho brasileira. Isso sem falar da ausência de revalidação dos diplomas (e consequente submissão de brasileiros a médicos que assim não são reconhecidos, nem controlados, pelos respectivos Conselhos de Medicina).

Para simplificar, fiquemos apenas na remuneração. Como se sabe, houve oferta igualitária do mesmo salário para todos os profissionais estrangeiros. Porém, caso tais notícias sejam verdadeiras, haverá médicos "menos iguais" que outros – pois trabalharão de forma idêntica, mas não receberão igual salário. Assim, além de poder se constituir em forma transversa de realizar doações públicas a Estado estrangeiro, o Mais Médicos poderá colocar em xeque o sistema de direitos celebrado na Constituição. A pergunta que se faz é: pode um sujeito, porque estrangeiro, abdicar dos direitos garantidos constitucionalmente a todos os trabalhadores? O programa pode aceitar discriminações quanto à remuneração dos médicos, impostas pelos países de origem? Enfim – e como no caso da Fifa, porém mais sério – cabe a pergunta: o que disciplina a relação de tais médicos com o Estado brasileiro? É ou não a nossa Constituição?

Egon Bockmann Moreira, advogado e doutor em Direito, é professor da Faculdade de Direito da UFPR.

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