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O que as tarifas do Trump revelam sobre a democracia do Brasil?

A tarifa de Trump é um recado: o STF atua sem freios, censura opositores, concentra poder absoluto e rompe a ordem democrática no Brasil. (Foto: André Borges/EFE)

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Cinquenta por cento de tarifa sobre todos os produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos. A sanção anunciada por Donald Trump vai além da economia, o alvo não está na balança comercial. Está no Supremo Tribunal Federal (STF), hoje, o epicentro da ruptura institucional brasileira.

À primeira vista, parece mais um gesto de protecionismo trumpista. Mas a mensagem é de Trump clara: trata-se de uma resposta à escalada autoritária da Corte, que há anos atua sem freios, sem limites e sem oposição.

O Brasil vive hoje uma inversão de poderes. O centro da política já não está no Executivo nem no Legislativo. Está no Judiciário, especialmente no STF. Com 11 ministros indicados por presidentes e mandatos vitalícios, a Corte concentra um poder sem precedentes. A maioria foi escolhida durante os governos do PT, e a atuação do tribunal passou a refletir essa orientação ideológica.

A repressão à liberdade de expressão virou prioridade, especialmente contra vozes dissidentes. Alexandre de Moraes, o mais poderoso entre os ministros, é o símbolo dessa escalada

Em 2019, instaurou o chamado Inquérito das Fake News, um processo sigiloso criado para perseguir críticos da Corte nas redes sociais. Desde então, mais de 130 pessoas foram alvo de censura, remoção de conteúdos, bloqueio de perfis, o que resultou até na suspensão de plataformas inteiras.

Durante as eleições de 2024, Moraes mandou bloquear o X (antigo twitter) no Brasil, alegando que a rede poderia influenciar negativamente o resultado das urnas. A livre circulação de ideias virou, oficialmente, uma ameaça à democracia.

O modelo de controle do debate público ganhou respaldo institucional. Diante da resistência do Congresso em aprovar uma regulação das redes sociais, o STF decidiu agir por conta própria. Reinterpretou o Marco Civil da Internet, lei que garante a liberdade de expressão no ambiente digital, para permitir que plataformas removam conteúdos sem decisão judicial. Na prática, o que Alexandre de Moraes já fazia sozinho passou a ter o aval da Corte.

As investidas do Supremo ultrapassaram as fronteiras brasileiras. O jornalista Allan dos Santos, alvo do Inquérito das Fake News, se refugiou nos Estados Unidos após ter suas contas bloqueadas por criticar a Corte e um mandado de prisão preventiva decretado.

Já fora do país, voltou a ser perseguido quando Alexandre de Moraes ordenou que a plataforma Rumble bloqueasse sua conta e a de outros brasileiros com cidadania americana.

A empresa se recusou, alegando que não tem sede no Brasil e que os usuários mencionados vivem no exterior. Como resposta, Moraes determinou o bloqueio da Rumble em todo o território nacional. Foi a terceira vez que uma plataforma foi tirada do ar por desobedecer a uma ordem de censura.

Nas eleições de 2022, o Judiciário teve um papel decisivo na disputa entre Lula e Bolsonaro. Sob comando de Alexandre de Moraes, o Tribunal Superior Eleitoral passou a controlar o debate público, definindo o que podia ou não ser dito sobre Lula.

Veículos foram impedidos de noticiar fatos e emitir opiniões críticas. Reportagens sobre sua ligação com o ditador Daniel Ortega foram removidas, e jornalistas foram orientados a evitar qualquer menção às suas antigas condenações. Longe de atuar como árbitro, o Judiciário entrou em campo para defender um dos lados.

E os absurdos continuaram. Em 8 de janeiro de 2023, milhares de manifestantes foram a Brasília protestar contra Lula. Todos os presentes foram presos, inclusive pessoas que sequer participaram dos atos.

Muitos seguem encarcerados sem o devido processo legal, e dezenas já foram condenados a até 17 anos de prisão por tentativa de golpe. Entre eles, ambulantes, moradores de rua, uma mulher que pintou uma estátua com batom e até uma avó em cadeira de rodas. Um deles, Clezão, morreu na prisão. E quem julgou tudo isso? A própria Suprema Corte.

E, claro, não parou por aí. O alvo não são avós em cadeiras de rodas. O verdadeiro alvo é Jair Bolsonaro. Ele e dezenas de aliados, incluindo ex-ministros e militares, estão sendo processados por tentativa de golpe de Estado, em um caso que já se configura como um dos mais graves abusos de poder judicial da história do Brasil.

Bolsonaro sequer estava no país no dia 8 de janeiro e, antes de deixar o cargo, reconheceu a transição ao nomear os comandantes militares indicados pela equipe de Lula. Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal tem rejeitado pedidos básicos da defesa e segue sustentando a narrativa de um golpe articulado.

Vale lembrar que Bolsonaro está inelegível desde 2023. O motivo foi uma reunião com embaixadores, enquanto ainda era presidente, na qual criticou o sistema eleitoral brasileiro.

A reunião foi pública, transmitida ao vivo, e não trouxe nenhuma informação nova ou sigilosa. Mesmo assim, o Tribunal Eleitoral considerou o episódio suficiente para cassar seus direitos políticos até 2030. Na prática, eliminou o principal nome da oposição.

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O recado político de Trump

Foi nesse cenário que surgiram as declarações internacionais. Antes de anunciar as tarifas, Donald Trump publicou mensagens de apoio a Jair Bolsonaro e críticas diretas à Suprema Corte brasileira.

Pouco antes, o senador Marco Rubio já havia falado em sanções contra autoridades brasileiras envolvidas na repressão à liberdade de expressão. Logo depois, a tarifa foi oficializada.

Na carta que acompanhou a medida, Trump citou episódios de censura, perseguição política, violações à democracia e ruptura institucional, deixando claro que o gesto vai muito além da economia.

Ninguém duvida de que a tarifa seja ruim para os dois lados. Prejudica produtores americanos que dependem de insumos brasileiros, como aço, celulose, alimentos e minerais. E sufoca exportadores brasileiros, que perdem acesso ao seu segundo maior parceiro comercial.

Mas o que ela escancara é ainda mais grave. A Suprema Corte se comporta como se estivesse acima de tudo, até o momento em que suas decisões cruzam fronteiras e começam a afetar interesses internacionais.

Um país que tolera ministros com poderes quase absolutos e censura sistemática coloca em risco não apenas suas liberdades internas, mas também sua reputação e estabilidade no cenário global.

As tarifas revelam o que muitos ainda fingem não ver. Há uma ruptura institucional em curso no Brasil. Quando um parceiro comercial reage não a desequilíbrios de mercado, mas à censura judicial, à perseguição de opositores e ao controle do debate público, é porque os abusos já passaram do limite.

A liberdade de expressão é a base de qualquer sociedade democrática. Que a parceria comercial seja restabelecida. Mas, principalmente, que o Brasil encontre o caminho de instituições sérias e de uma democracia plena.

Anne Dias é advogada e comentarista do programa Café com Gazeta da Gazeta do Povo.

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