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O que nos permite falar não só de “algo”, mas de “alguém”, portador de direitos e deveres?

Ultimamente, alguns intelectuais têm defendido supostos “direitos dos animais”, a partir da capacidade cognitiva avançada de determinados animais superiores, como chimpanzés ou cães, ou mesmo afirmado seu caráter “pessoal”, a partir da constatação de suas emoções.

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O conceito de “pessoa” entrou no pensamento ocidental através da teologia: o termo grego hypóstasis, “posto sob”, para se referir às “Pessoas” da Santíssima Trindade que partilham a essência divina, foi vertido em latim como “persona”, “o que soa através”: a etimologia remete a uma realidade “subsistente” que possui uma “essência” ou “natureza” e que por esta se manifesta. “Pessoa” não é uma “essência” ou, biologicamente, uma “espécie”. Classicamente, a “pessoa” foi definida, por Boécio, como “substância individual de natureza racional”; trocando em miúdos: uma realidade inteligente. Modernamente, Kant salientou, como constitutiva da realidade pessoal, a “autonomia”, a capacidade de autodeterminação que vem da vontade livre racional. Em síntese: a razão instaura a liberdade, que é apanágio da pessoa e raiz da sua dignidade.

Classicamente, a “pessoa” foi definida, por Boécio, como “substância individual de natureza racional”; trocando em miúdos: uma realidade inteligente.

A filosofia e o bom senso nunca ignoraram a presença das emoções nos animais não racionais; chamando os afetos de “paixões”, sempre as afirmou como comuns aos bichos e aos seres humanos. A afetividade como a sensibilidade são características de todos os animais. O que caracteriza propriamente as sensações e afetos humanos ou pessoais é sua incorporação aos atos propriamente inteligentes e livres.

O pensamento filosófico tampouco negou que a sensibilidade animal é uma autêntica dimensão cognoscitiva; no entanto, à diferença do conhecimento inteligente da pessoa humana, a pura sensibilidade dos animais não-humanos só capta os dados sensíveis particulares, e não o caráter real ou próprio das coisas a ser conceituado. Do mesmo modo que a pura afetividade animal disparada pelas sensações só capta o estímulo afetante, e não um bem razoável a ser apreendido por meio de deliberação.

Contudo, estes conhecimento, volição e afetividade de caráter intelectual e não meramente sensível, são a expressão da pessoa, e não sua própria realidade (que é aquela “subsistência” mencionada acima). E é por isso que alguém dormindo ou inconsciente, sem realizar atos intelectuais e livres, não deixa de ser pessoa ou não perde sua dignidade; e é por isso também que se postula, em boa filosofia, a personalidade dos embriões humanos: a inteligência é algo que pode se fazer consciente, mas ela é a potência dos atos inteligentes conscientes e livres, não se confundindo com os mesmos. A dignidade da pessoa não reside no “uso” de tais capacidades, e nem é eliminada se, em virtude de insuficiente desenvolvimento corpóreo ou de enfermidade do organismo, seu exercício ainda não é possível ou fica obstaculizado. Tais capacidades, da inteligência abstrativa e do desejo livre decorrente da primeira, jamais se apresentaram em quaisquer espécies animais não humanos, de modo que não podemos neles supô-las, nem, portanto, sustentar a existência de direitos seus, ainda que, no trato com eles, devamos levar em consideração seu caráter senciente, no grau em que concretamente exista.

Joathas Bello é doutor em Filosofia pela Universidad de Navarra e professor da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro e da FAETEC-RJ
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