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STF julga uso de dados do antigo Coaf e da Receita Federal em investigações
Plenário do STF durante o julgamento do uso de dados do antigo Coaf e da Receita Federal em investigações.| Foto: Nelson Jr./STF

Ao julgar o HC 399.109, o Superior Tribunal de Justiça acolheu a tese que punir o não pagamento do ICMS com a pena privativa de liberdade seria uma maneira eficiente de incentivar o contribuinte a recolher pontualmente os valores devidos. Para além das análises próprias ao Direito Penal e ao Direito Tributário, criminalizar o mero inadimplemento tributário traz, em realidade, incentivos que operam na contramão de princípios e objetivos constitucionais como a livre iniciativa e o fomento às condições de pleno emprego.

Pode-se afirmar que há quatro categorias principais de inadimplentes tributários: o sonegador lombrosiano, o empresário em dificuldades, o inadimplente estratégico e o objetor de consciência. Colocaremos este último de lado.

Sempre disposto a correr riscos de grande monta, o sonegador lombrosiano conscientemente burla as obrigações fiscais via ocultação, dissimulação ou fraude. Trata-se de um criminoso, no sentido jurídico próprio do termo. Já o empresário em dificuldades normalmente vivencia situação trivial, comum a qualquer pessoa que se disponha a empreender. A ruína empresarial não deveria acarretar riscos à liberdade do indivíduo nem lançar o empreendedor ao opróbio.

Descrever o inadimplente estratégico, contudo, exige um pouco mais de esforço. O inadimplente estratégico tende a aceitar riscos maiores para poder “jogar” com o sistema, permanecendo no limite entre a legalidade e a ilegalidade. A rigor, em geral a conduta desse tipo de inadimplente é lícita. Porém, devido à intensidade quantitativa ou qualitativa, o conjunto das suas condutas acaba causando danos ao Erário e a outros contribuintes, pelo viés da concorrência desequilibrada. Para enfrentar essa ambivalência, caberia ao legislador desenhar mecanismos que estabelecessem os critérios objetivos para caracterização do “inadimplente estratégico”. E sempre uma resposta típica de regime tributário, patrimonial, e nunca penal. A solução é imperfeita, por criar seus próprios desafios e pender à inconstitucionalidade, mas certamente é menos prejudicial que a criminalização proposta pelo STJ.

A criminalização mira o inadimplente estratégico, deixa escapar o sonegador lombrosiano e acerta o empresário em dificuldades.

Segundo estudo do Sebrae, o Brasil apresenta um alto índice de mortalidade precoce das empresas. A carga tributária em moeda e em trabalho para atender às exigências fiscais também é muito alta, batendo recordes mundiais, de acordo com pesquisas do Banco Mundial. Além das disfuncionalidades legais, provavelmente boa parte do insucesso empresarial se deve à falta de profissionalismo e de preparo dos candidatos a empreender. Pode-se conjecturar que o grupo mais importante de inadimplentes é formado por aqueles que querem pagar, mas não dispõem de meios para fazê-lo, e por isso mesmo se veem diante do dilema de deixar de pagar e ir à prisão, ou de deixar de declarar e também ser conduzido às “masmorras medievais” do nosso sistema penitenciário.

Ao visar os empresários em dificuldade, especialmente os que são avessos ao risco, a criminalização do inadimplemento cria incentivos para que o indivíduo deixe de empreender, ou opte por postura de cautela injustificável para poder fazer frente a uma consequência extraordinária, a prisão, desencadeada por um fato ordinário na perspectiva dos negócios, o inadimplemento. Com isso abre-se o caminho ao by-pass favorito da nação, o jeitinho, ainda que virtuoso, para corrigir o erro no desenho da política de combate ao inadimplemento.

A isso tudo se soma a natureza absurdamente exacerbada das multas previstas na legislação tributária, que de um passe de mágica podem levar um débito inicialmente banal, corriqueiro, a cifras que às vezes correspondem a mais que o dobro do valor da dívida original. A eficácia desse tipo de punição é duvidosa, não apenas porque o Judiciário às vezes reduz os respectivos valores, mas principalmente em razão da prejudicial expectativa de que, mais cedo ou mais tarde, remissões, anistias e parcelamentos diminuirão o peso da punição. Novamente, o sonegador lombrosiano e o inadimplente estratégico são os que levam vantagem nesse cenário, por serem mais resilientes ao risco exacerbado. Já o empreendedor que deseja cumprir à risca a legislação se verá à margem, e certamente será injusto criticá-lo por ao final optar por uma atividade de menor perigo, como empregado, funcionário ou servidor.

A aparente situação ótima para o Estado-primitivo é a situação desastrosa para o Estado desenvolvimentista e para a própria sociedade. Faria mais sentido e seria mais eficiente desenhar um modelo para abordar o quadro específico do inadimplente estratégico, sem sacrificar o empresário em dificuldades num suposto altar do interesse público e da alegada defesa da concorrência.

Thiago Buschinelli Sorrentino, mestre em Direito Tributário e professor do IBMEC/DF. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal por dez anos. Autor do estudo "Consequências da criminalização objetiva do inadimplemento tributário ao empreendedorismo".

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