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| Foto: Fayez Nureldine/AFP

Nos dias que se seguiram ao assassinato de Jamal Khashoggi por agentes sauditas em Istambul, uma pergunta foi repetida à exaustão: como é que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman podia ser tão violento a ponto de aprovar um crime hediondo, cometido de forma tão atrapalhada e explícita?

A resposta, em minha opinião, é que as ditaduras são inerentemente obtusas. Os autocratas vivem na bolha de adulação e impunidade que criaram para si, o que os leva a erros grotescos de cálculo quando são forçados a agir fora dela.

O assassínio premeditado e a sangue frio de Khashoggi revela semelhanças assustadoras com o assassínio premeditado e a sangue frio do líder socialista italiano Giacomo Matteotti, cometido por bandidos fascistas sob as ordens de Benito Mussolini.

Na tarde de 10 de junho de 1924, Matteotti caminhava em Roma quando um grupo o agarrou e o colocou em um carro que estava à espera; dois meses depois, seu corpo, já em decomposição, foi encontrado a pouco menos de 20 quilômetros dali.

Vários dias antes de sua abdução, Matteotti tinha feito um discurso inflamado, denunciando as fraudes e os atos violentos cometidos pelos fascistas durante as eleições nacionais, dois meses antes. Ele deveria fazer outro pronunciamento quando da reabertura do Parlamento, um dia depois de seu desaparecimento.

O assassinato de um crítico proeminente do regime chocou a Itália e o mundo. Antes do desaparecimento e morte de Matteotti, os aliados democráticos do país já tinham se preparado para acreditar que, apesar da ascensão violenta de Mussolini ao poder, ele teria a intenção de respeitar as regras e liberdades da democracia parlamentar.

Matteotti tinha feito um discurso inflamado, denunciando as fraudes e os atos violentos cometidos pelos fascistas durante as eleições nacionais

Durante alguns meses, enquanto se desenrolava a investigação oficial, a sobrevivência política do primeiro-ministro pareceu estar por um fio, com provas e mais provas confirmando que os assassinos de Matteotti faziam parte de um esquadrão de extermínio sob o controle e agindo sob as ordens do gabinete oficial.

Mussolini sobreviveu à crise graças à fragilidade e às divisões de sua oposição política, porque o rei italiano, Vítor Emanuel III, que o tinha convidado para formar um governo, ficou com medo de se arriscar a um “salto no escuro”, exigindo sua renúncia.

Mussolini também foi salvo graças à cumplicidade dos aliados estrangeiros e à opinião pública internacional, que aceitou a explicação pouco plausível de que os assassinos de Matteotti eram fascistas esquentados e agiram no calor do momento, para “lhe dar uma lição”, e o mataram sem querer.

Na época, como hoje, havia interesses petrolíferos poderosos no caso – ou seja, possíveis pagamentos ao irmão de Mussolini, Arnaldo, cujo papel era semelhante ao de Jared Kushner hoje –, que contribuíram para o consenso do “esquecimento” do crime brutal.

Naqueles dias também, a reação de horror quase universal ao assassínio de Matteotti foi surpreendente, já que a violência era traço comum do fascismo. Os homens que o mataram já tinham usado de violência, intimidação e fraude durante as eleições de 1924, as mesmas que deram a Mussolini a maioria no Parlamento. Para o mundo – e a maioria da classe média italiana –, Mussolini tinha evitado uma revolução em estilo bolchevique na Itália, e estava preparado a ignorar o que era considerado um pouco de “violência residual”, achando que ela se dissiparia depois que o Duce assumisse a carapaça de político respeitável.

Só que a Itália ainda era uma democracia semifuncional e, graças a isso, o crime e as mentiras usadas nas tentativas de mascará-lo foram expostas. Testemunhas tinham visto Matteotti ser forçado a entrar no carro; um casal de idosos notara o Lancia dos assassinos vigiando a casa de Matteotti dias antes do sequestro e anotaram a placa.

Opinião da Gazeta: Jamal Khashoggi e a liberdade de imprensa no Oriente Médio (editorial de 18 de outubro de 2018)

Leia também: O Islã é compatível com a modernidade? (artigo de Ali Zoghbi, publicado em 1.º de dezembro de 2017)

A polícia encontrou o banco do automóvel coberto do sangue de Matteotti, que fora esfaqueado várias vezes e teve o corpo mutilado. Uma investigação inicial relativamente independente ligou os criminosos ao gabinete de Mussolini, no qual um de seus principais assessores, Cesare Rossi, dirigia o serviço de imprensa e o Ceka Fascista, esquadrão da morte que ganhara o nome do antecessor bolchevique da KGB.

Matteotti foi morto antes do discurso que faria no Parlamento porque vinha reunindo provas e pretendia expor a corrupção que permeou o processo de uma grande concessão petrolífera pelo governo altamente personalizado de Mussolini a uma empresa norte-americana, a Sinclair Oil.

O primeiro-ministro conseguiu que o caso fosse transferido para investigadores mais maleáveis, que concluíram que a morte de Matteotti tinha sido involuntária e não planejada. O passar do tempo, a hesitação dos políticos italianos, o interesse próprio dos governos estrangeiros e a cumplicidade da imprensa mundial ajudaram Mussolini a sobreviver.

Um livro novo, La Scoperta dell’Italia, do historiador Mauro Canali, descreve de forma impressionante como os fascistas manipularam os jornalistas estrangeiros durante a crise Matteotti. Na época, dois dos veículos de comunicação mais importantes do país, a Associated Press e o New York Times, eram administrados localmente por Salvatore e Arnaldo Cortesi, pai e filho, cidadãos italianos e fascistas ferrenhos.

Rossi, o assessor de Mussolini que deu instruções ao esquadrão de extermínio e fugiu para Paris para evitar a queda, ofereceu ao jornal norte-americano documentos que implicavam o primeiro-ministro – mas a organização recusou, uma porque ele pediu US$ 15 mil pela documentação, e outra, porque os jornalistas relutaram a aceitar a ideia de Mussolini como um assassino político.

Rodrigo Constantino: O mito da Idade de Ouro islâmica (publicado em 19 de junho de 2018)

Leia também:Causas e soluções para o terrorismo islâmico (artigo de Marcelo Brandão Cipolla, publicado em 3 de julho de 2018)

Rossi fez acordo com o New York World, e Arnaldo Cortesi publicou um longo artigo no Times, na tentativa de desviar a responsabilidade de Mussolini e desacreditar as revelações de Rossi. Na manchete que o encabeçava, se lia: “As ‘revelações’ de Rossi caem por terra na Itália; por que fracassou o ataque de ex-membros do governo a Mussolini no caso do assassinato de Matteotti. Não há provas de premeditação”.

E logo depois o mundo se mostrou mais que disposto a esquecer tudo e fazer negócios com Mussolini, que conseguiu consolidar sua ditadura. A impunidade latente não foi boa nem para Mussolini, nem para a Itália, reforçando apenas sua imagem de onipotência perigosa. E, embora fosse extremamente astuto no julgamento e manipulação de seus oponentes internos, cometeu erros catastróficos constantes na política externa, subestimando a Inglaterra e os EUA, ignorando os conselhos dos assessores, que o alertaram para a falta de preparo da máquina de guerra italiana, e acreditando na própria retórica de que a Itália era uma nação de “8 milhões de baionetas”. Os ditadores raramente acabam bem.

Esse caso talvez ajude a entender por que os sauditas tiveram o descaramento de matar Khashoggi em Istambul. Agora, o Congresso americano e a imprensa internacional devem evitar os erros cometidos durante o caso Matteotti.

Um jornalista de meia-idade e fora de forma jamais enfrentaria 15 agentes em uma luta corpo a corpo, e ninguém leva um médico legista e uma serra de ossos para o interrogatório de um dissidente político. Se Khashoggi foi morto acidentalmente, os sauditas podiam muito bem ter entregue seu corpo para autópsia. Só o fato de não mostrarem o cadáver já é uma admissão virtual de culpa de assassinato premeditado.

Alexander Stille, professor de Jornalismo na Universidade Columbia, é autor de “Benevolence and Betrayal: Five Italian Jewish Families Under Fascism”.
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