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Imagem ilustrativa.| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Um fantasma ronda o Ocidente: o fantasma do juiz esclarecido. O espectro, com mais ou menos sucesso, tem assombrado muitas das democracias ocidentais. Dos EUA à Itália, do Canadá ao Brasil, a sua presença é tão intensa que já há quem fale, com alguma ironia, mas muita preocupação, numa gradual passagem dos sistemas representativos para um tenebroso reinado (ou proto-reinado) de juízes progressistas. Por aqui, o seu avanço insidioso tem sido tratado por muitos como uma simples querela entre o presidente da República – uma suposta ameaça à democracia – e membros do Supremo Tribunal Federal – autodeclarados defensores da dita democracia.

O impasse, no entanto, está longe de ser tão simples, pois o que está em jogo não é somente o mandato ou a reeleição deste ou daquele governante, mas a própria sobrevivência das democracias ocidentais.Para se ter uma ideia do real alcance e magnitude do embrolho, e sobretudo dos enormes estragos e tensões que tem causado pelo mundo afora, vale a pena dar uma lida no recém-lançado La démocratie au péril des prétoires. De l’État de droit au gouvernement des juges (A democracia sob ameaçados tribunais. Do estado de direito ao governo dos juízes, em tradução livre), do ex-membro do Conselho Constitucional da França – o STF de lá – Jean-Éric Schoettl.

O que salta aos olhos no livro de Schoettl é, de saída, a semelhança do quadro francês com o brasileiro: tanto lá como aqui, o ativismo dos tribunais tem sistematicamente impedido que os governantes eleitos governem segundo o programa que os eleitores aprovaram nas urnas; tanto lá como aqui, medidas saídas da cabeça de magistrados que se julgam verdadeiros guias de consciência têm afetado gravemente as liberdades individuais e perturbado o cotidiano dos cidadãos; enfim, tanto lá como aqui, tamanha ingerência na condução da sociedade tem lançado em descrédito o sistema representativo e, consequentemente, a própria democracia tal qual a conhecemos no Ocidente.

Essa sensação de que se está diante de um quadro muito similar ao brasileiro persiste quando Schoettl dá a conhecer as razões pelas quais o seu país, gradativamente, mergulhou no que denominamos por aqui “ditadura da toga”. Uma delas, sobremodo importante, diz respeito à formação dos magistrados, a maior parte deles proveniente de universidades públicas, nas quais o progressismo e o ativismo político naturalizaram-se.

Há pelo menos duas décadas, e num crescendo, as universidades têm despejado na sociedade mais e mais magistrados convictos de que sabem os caminhos para o “bem viver” em sociedade e de que têm legitimidade para impor suas escolhas aos outros. Dito de uma maneira mais grosseira: magistrados vaidosos, histriônicos e, sobretudo, crentes de que têm uma missão nos tribunais: educar o cidadão ordinário, uma personagem grosseira, racista, homofóbica, antiecológica, em suma, a encarnação do atraso e do obscurantismo.

Tamanha convicção e prepotência – amparadas e infladas por uma mídia igualmente dogmática, por grupos identitários, por poderosos lobbies internacionais e por um número não insignificante de intelectuais – têm promovido, segundo Schoettl, uma alteração perigosa no mundo jurídico: o direito operado nos tribunais virou-se contra a lei. As leis promulgadas, expressão durável da vontade geral, não são mais garantia de segurança para o cidadão; cotidianamente, as suas determinações são relativizadas pela jurisprudência das Cortes Supremas (nacionais e internacionais) que, na sua sanha de corrigir o mundo, educar a gente comum e supostamente proteger as muitas vítimas do sistema, não hesitam nem mesmo em decidir contra a lei promulgada, ignorando-a ou reescrevendo-a – é gente que quer derivar “a democracia do Direito, e não o Direito da democracia”, adverte Schoettl.

Ora, se as leis, aquelas forjadas em câmaras que congregam os representantes eleitos pelo voto popular, estão se tornando, por razões diversas, um emaranhado de regras instáveis, sujeitas à interpretação de magistrados que se julgam imbuídos da missão de transformar a sociedade, que importância têm, de fato, o legislador e o legislado?

A base da democracia representativa é a eleição de representantes, daqueles que irão legislar, isto é, criar leis e regras sustentadas em valores e princípios compartilhados pelos representados, e daqueles que vão estar à frente do governo, que vão, espera-se, propor e executar medidas que a maioria dos eleitores entende ser melhor para as suas vidas.

Ao esvaziar o Poder Legislativo, relativizando as leis promulgadas, e engessar o executivo, criando mil obstáculos – muitos deles fúteis e absurdos – ao exercício da governança, o Judiciário parido nas últimas décadas, inflado e sem limites, acabou por minar a crença do cidadão comum no voto popular e meteu as sociedades ocidentais num beco sem saída.

É, pois, compreensível mas alarmante que, um pouco por todo lado no Ocidente, cresça a olhos vistos o número dos que não fazem a menor questão de votar, dos que estão persuadidos de que pouca ou nenhuma serventia tem escolher representantes destituídos do poder de governar e, o que é pior, condenados a consumir os seus mandatos cumprindo determinações de magistrados eleitos por ninguém.

Jean Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista”, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.

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