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O projeto de lei que cria o Sistema Nacional de Educação (SNE) – agora popularmente chamado de SUS da Educação – representa um momento decisivo para o futuro da educação brasileira. Esse avanço, contudo, apresentou um risco à autonomia federativa antes de ser aprovado na Câmara dos Deputados, na última semana. Isso porque o texto original possuía dispositivos que davam caráter vinculativo às decisões da Comissão Intergestores Bipartite da Educação (CIBEs) e da Comissão Intergestores Tripartite da Educação (CITs). Mas o texto aprovado de forma responsável pelos parlamentares, com o olhar atento da sociedade civil, foi ajustado para retirar essa perigosa vinculação.
Esse ponto não é um detalhe técnico: trata-se de uma questão fundamental para o equilíbrio do pacto federativo. Permitir que decisões tomadas por um grupo restrito de 18 representantes se tornassem obrigatórias para estados e municípios seria um erro grave, com consequências profundas para a governança da educação. Ao centralizar poder em poucas instâncias nacionais, o projeto original colocava em risco a autonomia federativa e a capacidade de cada ente federado de formular políticas adequadas à sua própria realidade.
O Brasil precisa de um Sistema Nacional de Educação. Mas precisa, sobretudo, de um sistema que fortaleça a aprendizagem e não que amarre gestores em regras distantes da realidade
O Brasil não é um país homogêneo. São 5.570 municípios, distribuídos por um território continental, com desigualdades sociais, econômicas e culturais. Há cidades grandes e ricas, com estrutura consolidada; e há pequenos municípios rurais, com enormes carências. Imaginar que um conjunto reduzido de decisões centralizadas daria conta de representar toda essa diversidade é desconhecer – ou ignorar – a realidade do país.
A educação é, por natureza, um processo que exige contextualização. Uma política pública que funciona em São Paulo pode não ter o mesmo impacto no interior do Maranhão. Um programa bem-sucedido em Curitiba pode ser inviável em municípios ribeirinhos da Amazônia. É por isso que a autonomia dos estados e municípios não é apenas um princípio federativo: é uma necessidade prática para que cada rede educacional possa desenvolver soluções eficazes e adaptadas às suas condições locais.
A proposta original do Sistema Nacional de Educação, ao dar caráter vinculativo às decisões da CIBEs e CITs, engessava essa possibilidade. Estados e municípios seriam obrigados a seguir orientações centralizadas, mesmo que incompatíveis com suas realidades. Essa medida seria uma camisa de força para a gestão educacional, comprometendo a eficácia das políticas públicas e, no fim das contas, prejudicando quem mais importa: os alunos.
A vitória parcial obtida na Câmara dos Deputados é resultado da atuação vigilante da sociedade civil. A Associação De Olho no Material Escolar, assim como outras organizações comprometidas com a qualidade da educação, demonstrou que é possível dialogar com o Parlamento de forma construtiva e baseada em evidências. O trabalho junto ao relator foi decisivo para que o texto avançasse sem comprometer a autonomia federativa.
Mas essa não é uma batalha encerrada. O projeto do Sistema Nacional de Educação agora segue para o Senado Federal. A expectativa é de que os senadores mantenham os ajustes aprovados na Câmara, garantindo que o SNE não seja um instrumento de centralização, mas sim de cooperação entre União, estados e municípios.
O Brasil precisa de um Sistema Nacional de Educação. Mas precisa, sobretudo, de um sistema que fortaleça a aprendizagem e não que amarre gestores em regras distantes da realidade. A educação precisa ser construída com base em representatividade, equilíbrio federativo e compromisso real com a qualidade do ensino. O compromisso é com as crianças e jovens brasileiros, que merecem uma educação que respeite suas realidades e lhes ofereça oportunidades de aprendizado de verdade.
O Senado tem agora a responsabilidade de assegurar que o texto aprovado na Câmara seja mantido. Essa é a única forma de garantir que o Sistema Nacional de Educação seja um instrumento de cooperação, e não de imposição.
Letícia Jacintho é presidente da Associação De Olho no Material Escolar.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



